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LAC-AC: Liga Acadêmica Curitibana de Análise do Comportamento

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Transtorno do Jogo pela Internet: uma breve perspectiva comportamental


(Texto escrito por Alisson Lepienski, membro efetivo LAC-AC)

Desde a aparição dos primeiros jogos eletrônicos na década de 70, diversos grupos de estudiosos e de organizações sociais começaram a questionar a possível influência dessas atividades de lazer no comportamento e na sociedade. Os estudiosos, contudo, não são unânimes em suas opiniões: uma parte defende sua utilidade e benefícios para os jogadores, enquanto outra afirma que eles são capazes de destruir vidas e perverter os cidadãos.

Apesar das discussões, os jogos não pararam de progredir e se tornaram cada vez mais complexos e capazes de fazer com que os jogadores se engajassem cada vez mais em seu conteúdo. “Viciado” começou a ser um termo bastante utilizado para descrever algumas pessoas que passam algum (ou muito) tempo jogando. Em alguns casos, os “viciados” deixam de fazer atividades essenciais do dia-a-dia para jogar. Em casos extremos, o jogador pode morrer por passar muito tempo sem realizar atividades vitais básicas. Obviamente, a psicologia e a psiquiatria são questionadas sobre esses comportamentos desviantes do que é considerado normal.

A American Psychiatry Association (APA) publicou há pouco tempo a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição (APA, 2014), uma das maiores referências para psicólogos e psiquiatras para a classificação de transtornos mentais. Além de modificações estruturais de seu sistema classificatório e novas características diagnósticas para Transtornos Mentais (já estabelecidos ou novos), o manual traz um capítulo intitulado “Condições para Estudos Posteriores”. Nessa seção, condições específicas do comportamento humano são descritas como possíveis classes diagnósticas, com o objetivo de incentivar mais estudos sobre elas e avaliar a inclusão destas como transtornos mentais em edições posteriores do manual. Assim, as classificações não se destinam ao uso clínico, mas são conceitos que podem ser utilizados na comunicação entre pesquisadores para produção de novos conhecimentos científicos. Apesar dessa especificação, a importância dessa seção não deve ser diminuída, pois faz o clínico atentar a aspectos importantes da relação do sujeito com o seu mundo que poderão ser considerados patologias futuramente e que podem trazer sofrimento no momento presente. Exemplos dos novos transtornos propostos são: Transtorno do Luto Complexo Persistente, o Transtorno por Uso de Cafeína e o Transtorno do Jogo pela Internet. Podemos perceber o incentivo da APA para que profissionais da saúde mental continuem a estudar a questão envolvendo jogos que não são considerados de azar.

O DSM-5 (APA, 2014) define que o Transtorno do Jogo pela Internet é caraterizado por um prejuízo clinicamente significante (ou ainda um sofrimento) decorrente do uso recorrente da Internet para jogar, não sendo incluídos aqui os jogos de azar nem o uso de mídias sociais, como o Facebook. A inclusão do critério do jogo ter caráter online deve-se ao maior número de pesquisas realizadas com este tipo de jogo em relação às pesquisas feitas com jogos off-line. O Manual alerta, contudo, que jogos offline também podem trazer prejuízos para a vida diária.

Como possíveis “manifestações comportamentais” desse transtorno trazidas pelo manual estariam: pensar no jogo mesmo quando não esteja jogando, abstinência por não jogar, a necessidade crescente de passar mais tempo jogando (tolerância), não conseguir controlar o tempo que passa jogando (mesmo sabendo das perdas psicossociais causadas pelo comportamento), perda de interesse por outras atividades anteriormente prazerosas, mentir sobre o tempo que passa jogando, utilização dos jogos para modificar um humor negativo ou ainda colocar em risco relações sociais, de emprego ou educacionais em decorrência dos jogos.

Durante o presente texto, analisaremos algumas contingências que estão possivelmente relacionadas a esta classe diagnóstica. Pressupõe-se que o leitor já possui algum conhecimento sobre a noção de psicopatologia na perspectiva Analítico Comportamental; caso não o possua, sugere-se a leitura de Gongora (2003). As contingências descritas são hipotéticas, e não representam todas as possibilidades dos motivos pelos quais alguém joga excessivamente de maneira prejudicial. Uma análise da psicopatologia de um indivíduo deve ser sempre idiográfica, percebendo a função daquele comportamento no contexto histórico e individual.

Primeiramente, analisemos a topografia descrita: a maior característica desse transtorno é que o comportamento de jogar possui uma frequência muito aumentada em relação a outros comportamentos. Jogar, por sua vez, é incompatível com muitos outros comportamentos necessários para manter a própria ocupação, educação, relacionamentos sociais ou até mesmo o próprio corpo em um estado aceitável. O Transtorno, portanto, seria caracterizado pelo sujeito se engajar mais em comportamentos relacionados ao jogo do que em comportamentos relacionados a outros níveis da vida cotidiana.

Pode-se hipotetizar que o valor reforçador do que é encontrado durante o jogo é maior e/ou mais imediato do que é encontrado como consequência de outros comportamentos. Os jogos eletrônicos são excelentes em demonstrar como o reforçamento imediato afeta e modifica a frequência de nosso comportamento. Diferentemente da maior parte da vida cotidiana, percebemos imediatamente a consequência de nossos atos nos jogos. Ao realizarmos um movimento errado, perdemos uma vida; ao escolher uma das alternativas dadas, percebemos como os outros personagens mudam seu relacionamento conosco ou como as condições do jogo são alteradas. Com essas consequências, nos tornamos mais capazes no jogo e conseguimos avançar ainda mais nas suas fases, o que pode ser por si só extremamente reforçador.

Essas características dizem respeito à maioria dos jogos, sejam eles online ou não. O que tornaria os jogos online mais “aditivos”? Acredito que os jogos online possuem duas características essenciais: eles não possuem um final determinado e eles possuem um aspecto social muito maior. Os jogos online muitas vezes não possuem um “objetivo final”, como uma fase ou um chefe final; eles não terminam. Assim, muitas vezes, permitem um crescimento quase infinito, que faz com que o jogador continue se engajando no jogo, mesmo depois de várias horas despendidas nele. Outros objetivos possíveis são as tentativas de subir em rankings de jogadores. Constantes atualizações nos modos de jogo, mecânicas e em mapas fazem com que o jogador sempre tenha o que fazer e que seu lugar dentro de rankings não esteja assegurado para sempre e tenha que continuar se engajando no jogo para o manter.

O aspecto social do jogo, além dos rankings, se dá pela necessidade de se associar a um grupo de jogadores. Muitas das partidas são disputadas por um grupo de pessoas que deve agir conjuntamente para obter a vitória sobre um grupo de inimigos. Assim, os jogadores podem estabelecer entre si contingências de reforçamento e punição, com o objetivo de melhorar o desempenho individual e do grupo. Assim, o jogador pode passar mais tempo para conseguir atingir as metas determinadas pelo grupo.  Outro aspecto relevante a ser observado são as comunidades verbais relacionadas ao jogo, as quais provêm reforçamento por façanhas e outros tipos de habilidades demonstradas pelo jogador. É interessante notar, também, que a comunicação é mais facilitada pelo uso de meios eletrônicos, já que muitas das contingências que podem ser aversivas são retiradas (por exemplo, contato rosto a rosto), o que diminui o custo de resposta relacionado a essas interações.

Pode-se perceber que os jogos e suas comunidades possuem um grande número de mecanismos que podem fazer com que o sujeito passe bastante tempo engajado em atividades relacionadas a eles. O jogo online não possui apenas um meio de reforçamento, mas vários, o que o torna um estímulo altamente reforçador. Desse modo, devido a esse valor reforçador, o sujeito se engaja em diferentes comportamentos relacionados com o jogo (falar, pensar, pesquisar sobre ele, por exemplo).

As características da tolerância e da abstinência também seriam relacionadas aos próprios mecanismos do jogo. A tolerância se daria pelo fato que para progredir nos jogos, geralmente é necessário gradativamente maior engajamento. Exemplos clássicos são os MMORPGS (Massive Multiplayer Online Role-playing Games), no quais o número de inimigos requeridos para passar do nível 1 para 2 é pequeno, mas de 98 pra 99 gigantesco. Os esquemas de reforçamento aqui são muito importantes, já que são importantes para a manutenção da resposta, mesmo em condições muito exigentes. Inicialmente, temos reforçamento contínuo e depois, esquemas de reforçamento cada vez mais complexos (refoçamento intermitente).

As relações estabelecidas pelo sujeito com o jogo determinam não só suas respostas visíveis (sua “maestria” em relação ao jogo), também o que ele sente e pensa sobre ele, tanto em relação a sua frequência quanto em relação a sua intensidade. Efeitos da abstinência, como maior agressividade ao ficar algum tempo sem jogar, poderiam estar relacionados aos efeitos da privação e da extinção.

Podemos ter uma pequena noção dos motivos para os jogadores se engajarem tanto nessa atividade e como os jogos poderiam causar uma reação emocional tão grande do jogador. Mas o que fariam com que os jogadores deixassem de emitir comportamentos relacionados ao próprio bem-estar para jogar? Começamos aqui a analisar o caráter patológico do comportamento de jogar, onde tal resposta começa a prejudicar a vida da pessoa ou causar sofrimento.

A distribuição do comportamento em determinadas classes comportamentais depende das relações estabelecidas entre as contingências estabelecidas, o custo das respectivas repostas e a relação entre tamanho do reforçador e a demora deste em relação a resposta. Trocando em miúdos, “escolhemos” fazer algo dependendo do quão custoso é fazer algo e o quão grande e quão rápido os resultados virão. Percebemos que os jogos possuem diversos reforçadores que muitas vezes são rápidos. Além disso, os jogos são muito bons em nos ensinar como agir efetivamente, aumentando a complexidade de maneira progressiva e ensinando o jogador a ser hábil no jogo.

As contingências da “vida real”, contudo, não são assim. Muitas vezes, no contexto educacional, de trabalho ou mesmo de relacionamentos interpessoais, exige-se comportamentos com alto custo de resposta e com consequências muito atrasadas ou pequenas. Um relacionamento, por exemplo, exige respostas de envolvimento que podem ser bastantes difíceis de serem emitidas, principalmente se durante a história pessoal essas respostas foram punidas ou não foram ensinadas. Assim, há um empobrecimento dos reforçadores existentes na vida cotidiana do jogador decorrente das contingências ou de seu repertório ineficaz.

Outra possibilidade é de que os jogos são um meio de o jogador se esquivar de situações ou sentimentos relacionados ao meio não virtual. Os jogos, nesse sentido, podem ser utilizados para diminuir sensações, sentimentos e pensamentos indesejados. Um jogador com depressão ou ansiedade pode controlar esses sentimentos ao jogar ou progredir em seu jogo. Não é incomum alguns jogadores, mesmo não patológicos, “descontarem sua raiva” dentro de algum contexto virtual. O jogo, assim, pode ser uma fuga de determinadas contingências aversivas da vida cotidiana do jogador.

Aqui apresentei uma pequena parte do que pode tornar um jogo tão viciante. Há, obviamente, diversos outros mecanismos que podem fazer com que o jogador chegue a níveis patológicos de uso. A maioria dos jogadores chegam a um nível patológico de uso de jogos, mas é interessante notar como os processos comportamentais podem causar o que são chamados “transtornos mentais”. Podemos perceber pela exposição que, mais uma vez, os princípios básicos da análise do comportamento são capazes de analisar classes diagnósticas, mesmo que novas.

Se as psicopatologias, novas ou antigas, parecem seguir os mesmos princípios comportamentais dos comportamentos ditos normais, qual seria a utilidade de novas classes diagnósticas? Apesar da discussão ser longa, devemos pensar qual é a utilidade dessa classe diagnóstica para os profissionais que a utilizarão. Pessoalmente, espero que a descrição da classe diagnóstica “Transtorno de Jogo pela Internet” promova maiores estudos sobre os efeitos psicológicos do jogo, benéficos ou não, e descreva fatores que podem promover o uso patológico de jogos. Além disso, espero que a proposição sensibilize os profissionais sobre as possíveis implicações do jogar excessivamente e incentive a discussão sobre novas modalidades de tratamento.

Referências
American Psychiatry Association (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed.
Gongora, M. (2003). Noção de Psicopatologia na Análise do Comportamento. In C. E. Costa, J. C. Luzia, & H. H. N. Sant’Anna (Orgs.) Primeiros Passos em Análise do Comportamento e Cognição. Santo André: Esetec.

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