(Texto
escrito por Pedro Sampaio, convidado especial LAC-AC!)
A
estima com relação à ciência parece variar desde a total confiança até o mais
completo descrédito. Há desde aqueles que tomam “científico” como sinônimo de
“verdadeiro”, até aqueles que vêem a ciência como uma maneira limitada de
compreender os fenômenos, além de viver mais de erros do que de acertos.
Muitos
de nós conhecemos pessoas que representam bem estes dois extremos. Por exemplo,
não é incomum conhecermos pessoas que, por ouvirem na televisão que os
cientistas descobriram que comer ovo faz bem, passam imediatamente a comer
ovos. Se no mês seguinte lêem no jornal que cientistas descobriram que comer
ovo faz mal, imediatamente cortam os ovos de sua dieta. Da mesma forma,
rejeitam práticas diversas sem sequer a conhecerem por não serem “comprovadas científicamente”,
mesmo sem saber exatamente por que não o são.
No
outro extremo temos aqueles que acreditam que a ciência respaldar ou rejeitar
algo não quer dizer muita coisa. Afinal, se os cientistas dizem hoje que ovo
faz bem e daqui a um mês que faz mal, qual a credibilidade? Além de tudo, a
ciência parece rejeitar coisas que para muitos parecem fazer muito sentido,
como a astrologia, e práticas cujos resultados eles já sentiram na pele, como a
homeopatia. Como a ciência poderia saber mais que minha própria experiência?
O
meio acadêmico reflete, de uma forma ou de outra, essa amplitude de pareceres
do senso comum com relação à ciência. Assim, há também no meio acadêmico um
debate a respeito do ônus do conhecimento científico, destacadamente entre as
ciências ditas humanas e sociais. Não é raro ouvir em uma universidade tanto
professores quanto alunos dizendo coisas como “claro que isso é verdade! Isso é
cientificamente comprovado!” ou “essa visão sua é muito cientificista. É muito
reducionista, você têm que considerar coisas que fogem do escopo da ciência”.
Mas
afinal, o que significa ser “cientificista”, “reducionista”, “positivista” e
outros adjetivos similares frequentemente utilizados para taxar defensores de
uma compreensão científica dos fenômenos?
O
que parece que querem dizer por cientificismo é algo como estar preso a um
modelo, a um método (no caso, da ciência), como verdade absoluta, como única
maneira de compreender o mundo, ignorando uma enorme gama de outros fatos,
apenas porque este modelo/método não “dá conta” de abrangê-los. Algo muito
similar parece ser o que chamam de reducionismo, ou seja, reduz os fenômenos –
ou a compreensão dos fenômenos – a apenas aquilo apreensível por seu
modelo/método, ignorando aspectos importantes. Já o positivismo parece
geralmente vir atrelado à idéia de que há a adoção não apenas de um
modelo/método científico, mas de um bastante ultrapassado, adotado por
cientistas ortodoxos, uma negação de que existem formas diferentes de se fazer
ciência.
Acredito
que há problemas fundamentais nestas críticas.
Cientificismo
Parece-me
que a idéia de cientificismo carrega consigo a noção de que a ciência é um
método específico como, por exemplo, o método hipotético-dedutivo. Isso não é
verdade. “Ciência” é apenas “conhecimento” e é o nome que adotamos para uma
visão que envolve compreender e interrogar-se sobre o mundo de maneira cética.
Ou seja, sempre norteados pela pergunta “temos motivos para acreditar nisso?” e
“qual a melhor forma de investigar a respeito daquilo?”. Não poderia haver
perguntas mais amplas.
O
método que a ciência adota varia. Assim, se houver motivos para crer que os
métodos e modelos que atualmente adotamos estão errados ou que existem formas
melhores de abordar os fenômenos, descartaremos estes modelos atuais e
adotaremos este melhor. Se, por exemplo, alguém conseguir demonstrar que o
método hipotético-dedutivo tem sido insuficiente e que um método completamente
novo, que envolve uma visão radicalmente nova de mundo e de conhecimento,
consegue lidar melhor com os fenômenos, adotaremos este outro modelo. E ainda
assim continuará sendo ciência. Complemento o que disse anteriormente, dizendo
que ciência é apenas questionamento sistematizado: de por que deveríamos
acreditar em algo e qual a melhor maneira de investigarmos a respeito de
determinada coisa.
Isso
torna complicada a crítica de “cientificismo”. Este “ismo” é com relação a quê?
A questionar as coisas? A acreditar que apenas considerarei algo como
verdadeiro ou correto quando houver bons motivos para isso? Por quê isso é algo
ruim? E, olha que coisa linda, mesmo se a pessoa for capaz de apontar por que
questionar as coisas desta forma é algo ruim e que há maneiras melhores de
compreender, ainda assim será ciência! Pois esta será demonstradamente a melhor
maneira de abordar os fenômenos.
Desta
forma, acredito que a crítica de cientificismo só tenha alguma pertinência se
estiver se referindo a pessoas que acreditam dogmaticamente em algo porque foi
considerado científico ou comprovado científicamente, e da mesma forma rejeitam
apriorísticamente algo que não tem esse rótulo.
O
problema é que quem age desta forma está sendo tudo, menos cientista. Bem,
claro que ele pode ser, em termos de formação e cargos que ocupa, um
“cientista” (como um físico ou um biólogo), mas esta postura é o oposto de uma
atitude científica. Um dogmático da ciência é o maior contrassenso que conheço,
mas eles existem, infelizmente, e são tão inimigos do conhecimento quanto
quaisquer outros dogmáticos.
Reducionismo
Já o
termo reducionismo tem inegavelmente uma razão de ser, apesar de variar
bastante como ele é empregado (diversas correntes filosóficas, lógicas e
lingüísticas utilizam-no em sentidos bem diferentes). No entanto, parece que
reducionismo tornou-se o adjetivo padrão a ser usado para qualquer concepção
que rejeite o que você acredita ou explica de maneira diferente. Isso é
perigoso.
Não
podemos utilizar este termo como uma fuga. Afinal, simplesmente taxar uma
pessoa ou uma idéia de reducionista para que sinta que está com uma visão mais
ampla e sábia da questão, enquanto o reducionista veste viseiras de burro, não
diz nada. É preciso apontar o quê exatamente está sendo ignorado, quais os
motivos para crer que isso que está sendo ignorado existe e, principalmente,
por que ignorar isso compromete a análise do fenômeno. Do contrário, torna-se
apenas um inócuo adjetivo moral.
Existem
várias formas de reducionismo. Se alguém afirma que homicídios são causados
devido a um baixo poder aquisitivo do homicida, este alguém está reduzindo o
fenômeno a apenas um fator, que pode ou não contribuir na ocorrência de alguns
homicídios. Ignora, por exemplo, todos os casos de homicídio cometidos por
pessoas com alto poder aquisitivo; ignora o fato de que a enorme maioria das pessoas
com baixo poder aquisitivo não é homicida; ignora fatores que em vários casos
de homicídios parecem ser mais relevantes.
Positivismo
Se o
modo como o termo reducionismo tem sido utilizado incorre no risco de tornar-se
um inócuo adjetivo moral, esta parece ser mais a regra do que a exceção no caso
do positivismo. Este parece ter tornado-se sinônimo de antigo, bitolado,
ortodoxo, limitado. E principalmente no meio acadêmico, parecem chamar de
positivista alguém que só considera dados diretamente e consensualmente
observados e que acredita que o cientista é neutro em suas pesquisas.
Existem
diversos problemas nestas utilizações do termo. A primeira é que, ao dizer que
uma idéia é positivista, precisamos especificar de qual positivismo estamos
falando. Existem muitos, muitos tipos diferentes de positivismo. O positivismo
de Comte é diferente do de Durkheim, que é diferente do de Claude Bernard, que
é diferente do Juspositivismo, que é diferente do Positivismo Lógico, etc... A
maioria das atribuições do parágrafo acima não se aplica a grande parte destes
diferentes tipos de positivismo, inclusive o de Comte, “pai” do positivismo,
que, ao contrário do que é difundido, não ignorava a subjetividade, mas
considerava que uma pesquisa científica era fruto tanto da observação quanto da
imaginação.
Além
de ter de especificar a qual tipo de positivismo se refere, quem utiliza o
termo com uma conotação crítica tem também de especificar por que isso é algo
ruim. Dizer “você está sendo positivista” pode não significar nada se não é
especificado qual o demérito nisso, o que está sendo ignorado, o que está sendo
considerado em excesso, por que isso não deveria ser feito e como isso
compromete a consideração do fenômeno em questão.
Do
contrário, torna-se novamente fuga, taxando uma idéia de positivista como algo
pejorativo, mas sem justificar o porquê e consequentemente sem dizer muita
coisa.
E
outros “ismos”...
O
mesmo se aplica a outros tantos “ismos”. É importante estarmos atentos a como
utilizamos nossos termos, se sabemos o que estamos falando e se estes estão nos
auxiliando na compreensão ou fazendo o oposto.
A má
utilização dos “ismos” aqui abordados e de outros tantos que poderiam ser
mencionados, tem uma relação muito próxima com as duas posições extremas com
relação à ciência, mencionadas no princípio do texto. Apesar de tê-las colocado
como dois extremos opostos, tanto a confiança absoluta quanto a desconfiança
exagerada com relação à ciência parecem ocorrer pelo mesmo motivo: a má
compreensão da ciência.
Assim,
aquele que passa a comer ou parar de comer ovos apenas por que lhe disseram que
foi cientificamente comprovado que ovos fazem bem ou mal, demonstra
desconhecimento de algumas questões primordiais. Primeiro, é vital questionar
tudo, mesmo conhecimentos ditos “científicos”. Não é prudente aceitar uma
conclusão de uma pesquisa apenas pela autoridade de pretensamente ter sido
científica, mas procurar saber como esta pesquisa foi realizada, quais dados
foram coletados, como eles foram coletados, se a conclusão que estabelecem de
fato segue dos dados coletados ou se estão sendo precipitados em suas
conclusões e, principalmente, como esta pesquisa foi recebida por seus pares.
Afinal, é exigir demais todo esse esmero com relação a cada informação que nos
chega, mas se esta informação vai ser relevante a ponto de alterar meus
hábitos, é prudente pelo menos saber se há controvérsias ou não e por quais
razões.
Uma
pesquisa que seja mal-conduzida ou cuja conclusão não seja conseqüência
necessária de seus dados, provavelmente receberá críticas de seus pares,
apontando tudo isso. Não basta ter sido feita uma pesquisa, ela ter sido
conduzida em laboratório com a mais alta tecnologia ou ter tido uma amostra de
milhões de pessoas; nada disso é suficiente para que algo seja aceito e cientificamente validado. Não basta
fantasiar-se de ciência. A comunidade científica é ferina nestas questões,
extremamente crítica e exigente. O que é, a meu ver, uma de suas maiores
qualidades. O fato de a consagração de um cientista ser não apenas descobrir
algo novo, mas também demonstrar que algo que se acreditava anteriormente está
incorreto, faz com que a ciência tenha um processo auto-corretivo fantástico.
Uma
segunda razão pela qual a pessoa deveria desconfiar ao ouvir que “cientistas
descobriram que...” é por que as pesquisas científicas costumam ser muito – mas
muito mesmo – mal divulgadas pela mídia. A mídia funciona de acordo com seus
próprios interesses e estes, infelizmente, nem sempre têm a ver com um
comprometimento com o conhecimento.
Desta
forma, se na verdade a pesquisa indica que a gema do ovo, numa quantidade x,
quando ministrada a pessoas com colesterol y, numa faixa etária específica,
produz melhoras com relação ao desempenho de suas células z, não é incomum ser
divulgado: “cientistas descobrem que o ovo faz bem!” E se uma outra pesquisa
descobre que a clara do ovo, em quantidade a, quando ministradas a pessoas com
colesterol b, dentro das condições c, produz conseqüências danosas ao
organismo, pode ser divulgado que “cientistas descobrem que o ovo faz mal!”
Isso
acontece por que quase ninguém teria interesse em ficar sabendo o resultado de
pesquisas como estas – que são a maioria – e, assim, dão uma nova “roupagem” à
notícia, em manchetes atraentes para mais pessoas. São, no entanto, enganosas.
O
outro extremo, as pessoas que vêem a ciência com descrédito, é em grande parte
fruto da mesma desinformação. Acreditam que a ciência afirme convicções muito
precipitadamente e igualmente altere suas convicções no dia seguinte. Mas isso
é mais a divulgação midiática do que o que de fato está acontecendo. Um bom
cientista tende a ser extremamente cauteloso com as afirmações que faz e a
comunidade científica extremamente crítica na recepção destas afirmações. Se há
algo próximo de um consenso entre os cientistas com relação a algo, certamente
é porque existem razões muito boas para se acreditar naquilo. Se uma nova
informação/descoberta modifica a questão, o parecer dos cientistas pode também
se modificar. Perigoso seria o contrário, pois se determinada crença fosse um
erro, permaneceria um erro para sempre.
Mas
talvez o que mais cause oposição à ciência seja o fato desta ser cética com
relação a coisas que para muitas pessoas são verdades auto-evidentes,
geralmente por que elas experienciaram, sentiram na pele, sua suposta
veracidade. Citei como exemplo anteriormente a astrologia e a homeopatia.
Ninguém
está negando a experiência de ninguém. Aquilo que alguém sente é real e tem uma
causa. Mas não quer dizer que a causa seja aquela que a pessoa acredita ou que
ela sirva de respaldo para validar uma idéia, da mesma forma que um paciente em
um manicômio pode enxergar elefantes voadores por aí, mas o motivo pelo qual
ele os enxerga não é porque de fato existem elefantes voadores. Nem sempre a
explicação de nossa experiência está relacionada com o conteúdo de nossa
experiência.
Assim,
as previsões e descrições da astrologia podem fazer bastante sentido para muitas
pessoas, mas isso não quer dizer muito com relação a sua veracidade. Há razões
pelas quais a ciência rejeita a astrologia e nenhuma delas passa pela rejeição
das experiências das pessoas com a astrologia. Estas razões envolvem o fato de
fazerem descrições amplas, verdadeiras para muitas outras pessoas, ou que
gostaríamos que fossem verdadeiras; envolve fazer previsões difíceis de serem
falseadas, ou seja, independente do que acontecer, em muitos casos é difícil
dizer se ela se concretizou, se não, ou se ainda não; envolve o fato de que
tendemos a considerar e dar grande importância aos acertos, mas desconsiderar
os erros; e ao fato de que é possível fazermos as mesmas afirmações que os
astrólogos fazem, e com taxas de sucesso tão altas quanto ou maiores, sem
consultar astro algum, sem saber nada a respeito de astrologia, apenas sabendo
o que dizer. Dentre outros.
O
caso da homeopatia parece mais complicado, a primeira vista. Muitas pessoas
experimentaram melhoras consideráveis de muitas coisas diferentes tomando
medicamentos homeopáticos. Há muitos médicos, com muitos anos de estudo e
experiência, que garantem que a homeopatia funciona e é verdadeira, além de
pesquisas que parecem demonstrar resultados convincentes de procedimentos
homeopáticos.
Há
uma razão muito simples para que isso ocorra: a homeopatia de fato funciona.
Mas isso não quer dizer que ela seja verdadeira. Como isso é possível?
Isso
é possível porque existe algo chamado efeito placebo. Não entrarei em detalhes,
mas basta dizer que foi demonstrado que muitos pacientes que recebem pílulas de
farinha (ou com apenas água, ou com nada dentro,etc) acreditando que estão de
fato sendo tratados, frequentemente melhoram de seus males. Isso depende de uma
série de fatores e ainda é algo muito estudado, mas o fato é que a farinha nada
tem a ver com a cura daquele mal, basta que o paciente acredite que está
tomando um medicamento de verdade. Fora as melhoras espontâneas: há a cura
mesmo se não realizar tratamento algum, inclusive placebo.
O
efeito placebo é real, mas é também limitado. Os medicamentos cientificamente
validados são aqueles que apresentaram resultados bem melhores que o placebo. A
homeopatia ainda sofre de dois principais problemas: o primeiro, que não há
nenhuma evidência de suas afirmações, suas justificativas de por que funciona
(“memória da água”, “igual cura igual”, etc); o segundo, que o tratamento
homeopático nunca apresentou resultados melhores que o placebo. Nas pesquisas
que parecem apontar o contrário (curiosamente sempre conduzidas por homeopatas
e institutos homeopáticos) foram encontrados problemas metodológicos sérios ou
não foram passíveis de serem replicadas, o que compromete a confiabilidade de
seus dados.
Assim,
simplesmente não há razões para acreditar nem na astrologia, nem na homeopatia,
já que seus supostos efeitos, que fazem as pessoas sentirem o que sentem e
acreditarem nestes, têm outras explicações e não têm a ver com a veracidade das
afirmações nem da astrologia, nem da homeopatia. É por isso que a ciência os rejeita.
Agora,
se um dia houver razões para crer que a astrologia ou a homeopatia estão
corretas, isso pode mudar. O mesmo se aplica a quaisquer outras coisas.
Conclusão
Por
tudo isso, acredito que a maior parte do descontentamento com a ciência seja
fruto de sua má compreensão. O fato de doutores e professores universitários
expressarem apaixonadamente tudo isso que aqui abordei não quer dizer muito. É
triste essa constatação, mas é fato que existe um número incômodo de
professores, doutores, autoridades, que não têm, apesar da convicção com que
fazem suas afirmações, a menor noção do que seja ciência.
Escolhemos
dar o nome de ciência à melhor forma que temos para compreender as coisas, seja
lá qual for esta forma. Desconfie de quem disser o oposto. Aliás, desconfie de
mim também e de todos os cientistas. Fazendo isso, você estará sendo um
cientista.
Parabéns pela clareza do texto, Pedro. Agora, mais do que antes, recomendo a leitura de A ORDEM DO DISCURSO do Michel Foucault.
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