LAC-AC

LAC-AC: Liga Acadêmica Curitibana de Análise do Comportamento

terça-feira, 13 de maio de 2014

Por Favor, Uma Xícara de Café, Sem Açúcar, Mas Com Bastante Neurociência. E um pedaço de Análise do Comportamento, pra acompanhar.

por Bruno Tonet
(graduando em Psicologia pela UFPR, Diretor de Projetos da LAC-AC)
e Roberto Veloso
(graduando em Psicologia pela UFPR, Presidente da LAC-AC)


      A cafeína, ou, para os mais íntimos, 1,3,7-Trimetilxantina, pode ser encontrada em chás, alguns tipos de chocolates, bebidas específicas para controle de peso ou para melhoramento do desempenho de atletas, e até mesmo em cápsulas ou remédios, além, é claro, do próprio café (semente ou bebida), aparecendo em cada uma dessas fontes em diferentes quantidades. Seu uso, de maneira geral, está associado aos seus efeitos estimulantes que produz no sistema nervoso central (SNC) e no músculo cardíaco, que trazem uma sensação de “aumento de energia”.

Mas o café (e por assim dizer também a cafeína), não é só isso. O sabor característico, o aroma e o modo de preparo também são aspectos importantes para quem gosta de uma xícara de café, ou, para quem não gosta tanto assim, de um copo de chá gelado ou de determinados refrigerantes. Isso sem falar de como os momentos em que tomamos café também acabam se tornando de alguma maneira marcantes. O café da manhã é uma evidência por si só a esse respeito, mas também o são o cafezinho depois do almoço, o café da tarde e aquele cafezinho na casa do amigo (desculpa óbvia e elemento que não pode faltar para uma visita). Não nos será necessário entrar em detalhes histórico-econômicos para percebermos que o café é uma bebida importante para nós, brasileiros.

Trazendo para um cenário mais próximo da nossa vida acadêmica, geralmente usamos a cafeína, contida em uma deliciosa xícara de café, para fazer os estudos renderem mais, para ficarmos mais tempo acordados e conseguir cumprir as metas estabelecidas. Ao ler isso, nos deparamos com a seguinte questão: “Então tomar uma, duas ou três xícaras de café envolveria, em alguma medida, uma alteração no ambiente no qual estou ou estamos nos comportando?”. Poderíamos classificar essas “xícaras de café” do mesmo modo que classificamos uma alteração ambiental de iluminação para ler melhor os textos, a discriminação de estímulos importantes para se estudar uma matéria complexa, quantidade necessária de material de estudos na mesa para suprimir os “estímulos indesejados” ou que não influenciem na evocação do comportamento de estudar? Guardemos essas questões para logo adiante.

Quando a cafeína é consumida (administrada) oralmente, sofre rápida absorção no trato gastrointestinal e leva cerca de 60 a 90 minutos para atingir seu pico plasmático e exercer suas funções fisiológicas “máximas” (Ruxton, 2008; Lima et al. 2010). Segundo Ruxton (2008), o impacto da cafeína no humor e no desempenho está associado a uma inibição de receptores – adenosina e benzodiazepínico – cuja função está relacionada a diminuição da atividade cerebral. Ou seja, ao inibir os receptores que diminuem as atividades cerebrais com a cafeína, temos um “aumento” da atividade nervosa. Metaforicamente, a cafeína age no cérebro travando o freio do carro, que assim fica com dificuldades para reduzir a velocidade. Fredholm e colaboradores (1999), acrescentam a isso que o consumo de cafeína também causa alterações em alguns neurotransmissores, como a noradrenalina, dopamina, serotonina, acetilcolina, glutamato e ácido gama-aminobutirico (GABA), o que nos mostra que a interação cafeína/SNC é ainda mais complexa.

O que acontece, entretanto, se começarmos a analisar essas informações através dos estudos da Análise do Comportamento? Como podemos explicar os efeitos da cafeína sobre nossos comportamentos?

Em se tratando do composto químico, podemos começar especulando que a cafeína funcionaria como um eliciador de respostas fisiológicas que envolveriam o sistema nervoso central e o sistema cardiovascular. Isso fica claro quando percebemos que uma certa concentração de cafeína provoca respostas fisiológicas num organismo, ou seja, temos uma relação idêntica à dos comportamentos respondentes. Mas é só isso? Estaríamos limitados a explicar essas alterações comportamentais como uma relação tão direta assim? Como explicar, por exemplo, o efeito do café que me deixa acordado durante as madrugadas em que faço os trabalhos para entregar no dia seguinte? Como explicar?!

Essas questões são uma boa oportunidade para apresentarmos um assunto às vezes esquecido pelos professores nas disciplinas introdutórias de Análise do Comportamento: as operações motivadoras, ou, como preferimos, operações moduladoras, que são eventos que mudam o efeito de um determinado estímulo sobre o comportamento. Um exemplo comum é a privação de água, cujo efeito mais percebido no cotidiano é a sede. Outros efeitos menos percebidos no cotidiano, no entanto, foram muito estudados por analistas do comportamento, e podemos destacar alguns deles aqui. Entendê-los pode nos ajudar a também entender a influência do café, e de outras substâncias, no nosso comportamento.

Efeito 1: para uma pessoa que está há muito tempo sem beber nada, a água torna-se um estímulo importante, e qualquer comportamento que disponibilize um copo de água como consequência tem maiores chances de ser reforçado por esse estímulo. As operações moduladoras modificam o valor dos estímulos consequentes, aumentando ou diminuindo seus efeitos reforçadores ou aversivos. É interessante notar que esse efeito 1 também funciona no sentido contrário: conforme a privação de água torna tal estímulo importante pra essa pessoa, a remoção desse estímulo tende a ser mais aversiva para o comportamento. Isso pode parecer óbvio, mas trata-se de um aspecto importantíssimo, já que responde à pergunta de como um estímulo pode ser reforçador em um dado momento (quando estou com sede, por exemplo) e deixar de ser reforçador em outro (depois que bebo bastante água).

Efeito 2: para uma pessoa que está há muito tempo sem beber água, os comportamentos que produziram esse estímulo, como consequência, aumentam de probabilidade. As operações moduladoras acabam por alterar (aumentando ou diminuindo) a probabilidade de determinadas respostas ocorrerem.É dessa forma que nos percebemos, por exemplo, pensando em água quando estamos com sede ou até indo procurar o bebedouro.

Efeito 3: para uma pessoa que está há muito tempo sem beber nada, um copo de água tem uma grande probabilidade de evocar qualquer comportamento que leve a beber aquela água. As operações motivadoras, como se pode perceber, também modificam o efeito dos estímulos discriminativos sobre nosso comportamento. Basta comparar a pessoa sedenta que logo bebe um copo de água ao encontrar um pela frente e a pessoa que já bebeu bastante e, ao ver o mesmo copo de água, simplesmente o ignora. Em outras palavras, uma pessoa saciada de água não precisa beber mais, pois suas necessidades fisiológicas estão em um patamar “normal” quando comparada a uma pessoa que não bebeu água por um tempo consideravelmente longo.

As operações motivadoras possuem também outros efeitos interessantíssimos sobre nosso comportamento, mas deixaremos para abordá-los noutra oportunidade. Esses três que acabamos de ver já nos ajudam a interpretar como o café afeta nosso comportamento.

Não parece ser o caso de que o café exerça os efeitos 1 e 3. Em outros termos, não parece que quando bebemos café certas coisas tornam-se mais interessantes ou aversivas, exercendo efeitos reforçadores ou punitivos para determinados comportamentos. Contudo, se alguém argumentar que o café nos deixa mais eufóricos e depois de bebê-lo achamos certas tarefas menos chatas, como consequência de uma redução dos efeitos aversivos, teremos de concordar, pois, como descrito no efeito 2, quando ingerimos o café, há um aumento da probabilidade de um comportamento aparecer, seguido de uma redução da apresentação ou do valor que outros comportamentos. O problema é que esse efeito não parece ser intenso o suficiente para ficar claro numa especulação como esta.

Por outro lado, o efeito da cafeína no SNC parece aumentar a tendência geral de nos comportarmos (a pessoa fica animada, serelepe) e/ou diminui o efeito da fadiga no comportamento, permitindo assim que uma determinada ação possa ser repetida ou sustentada por um tempo maior, o que explica porque conseguimos nos concentrar (que é um comportamento operante), ler e enfim terminar o tal do trabalho que temos de entregar amanhã bem cedo. Esse efeito, de acordo com a interpretação formulada aqui, aproxima-se do efeito 2 apresentado acima.

O café (mais especificamente a cafeína) quando ingerido, então, funciona de maneira idêntica a uma operação motivadora que altera o limiar de fadiga de um organismo. Está explicado, portanto, como o café afeta nosso comportamento? Loooooonge disso; muito longe mesmo! Primeiramente, não há consenso a respeito dos efeitos da cafeína no nosso organismo. Em segundo lugar, são necessárias mais pesquisas na área comportamental a respeito das interações dessa substância com o comportamento, uma vez que a maiora das pesquisas focam-se em aspectos farmacêuticos, deixado de lado processos comportamentais. Por fim, vale a pena ressaltar que alguns efeitos do café não foram discutidos aqui (tal como não discutimos todos os efeitos das operações motivadoras).

O que podemos concluir, apesar dos pesares, é que embora o efeito do café pareça funcionar semelhante a uma operação moduladora essa semelhança é enganadora já que alguns aspectos do efeito da cafeína sobre o comportamento ficariam de fora dessa semelhança. Tal problema nos leva diretamente à questão: são as drogas operações moduladoras para o comportamento? Se sim, precisamos revisar esse conceito. Se não, precisamos explicar como drogas e comportamento interagem. E isso tudo sem recorrer à mentalismos ou outras ficções explicativas, ok?

Pensando por outro lado, ainda que não tenhamos chegado a conclusões que respondessem definitivamente nossas perguntas, essa consideração dos efeitos da cafeína no comportamento mostra de certa forma como o diálogo entre neurocientistas e analistas do comportamento pode ser produtivo para ambas as áreas do conhecimento e que, ao contrário do que alguns pensam, ele é possível e muito divertido.

Resistiram algumas perguntas: por que depois de um tempo o café (e outras drogas) deixam de fazer efeito na mesma dose? Por que nos habituamos a ele? Como isso está relacionado ao vício? Como isso influencia o tratamento comportamental das dependências químicas? Como é possível equilibrar os ganhos e prejuízos do uso do café no nosso cotidiano através do conhecimento de processos comportamentais? Deixaremos essas discussões para nossa próxima dose de cafeína com Análise do Comportamento.


Referências:

Corchs, F. (2012). Considerações da psicofarmacologia para a avaliação funcional. In: Clínica analítico-comportamental: aspectos teóricos e práticos. Em Nicodemos Batista Borges et al.  (Org.). Porto Alegre: Artmed.

Verneque, L.; Moreira, M. B.; e Hanna, E. S. (2012).  Motivação. In: Temas clássicos da psicologia sob a ótica da análise do comportamento. Em Maria Marta Costa Hübner, Márcio Borges Moreira (Orgs.); Edwiges Ferreira de Mattos Silvares, Fancisco Baptista Assumpção Junior, Léia Priszkulnik (Eds.). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012.

de Lima, F. A.; Sant'ana A. E. G.; Ataíde, T. R.; Omena, C. M. B.; Menezes, A. E. S.; Vasconcelos, S. M. L. (2010). Café e saúde humana: Um enfoque nas substâncias presentes na bebida relacionadas às doenças cardiovasculares. Revista de Nutrição, 23, 1063-1073.

         Ruxton, C. H. S. (2008). The impact of caffeine on mood, cognitive function, performance and hydration: a review of benefits and risks. British Nutrition Foundation Nutrition Bulletin, 33, 15-2

4 comentários:

  1. Olá Bruno e Roberto, muito bem construído o texto...Show de bola.

    Vc conseguiram pegar um evento do cotidiano para explicar um conceito complexo da análise do comportamento...parabéns.

    Vou levantar uma questão q a leitura "evocou":

    Há alguma diferença entre uma O.E., q altera o valor reforçador de um estímulo, com a alteração da sensibilidade do organismo?

    Em outras palavras, a cafeína não altera única e exclusivamente a sensibilidade do organismo aos estímulos do ambiente em geral, e a privação de agua altera o valor específico do reforço "agua"?

    Carlos Esteves

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    1. Oi Carlos,
      Fico feliz que tenha gostado do texto. Sua pergunta nos mostra que vc chegou no cerne da questão implícita no texto. Sinceramente não sei te responder. A impressão que tive ao estudar para escrevê-lo foi que estava me aproximando das fronteiras da Análise do Comportamento e a falta de respostas claras me deixou com a impressão de que trata-se de uma área que precisa ser melhor desenvolvida, claro, em parceria com os farmacologistas. Mas e vc? Qual sua hipótese a respeito?

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    2. Oi Carlos,
      Ao alterar o valor específico do reforçador, no caso da água, aumenta-se também a sensibilidade do organismo a estímulos relacionados ao estímulo reforçador (água). Ou seja, aumenta a saliência do estímulo para o organismo.

      Bruno Tonet

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    3. Bom dia meus caros, preciso continuar estudando, mas no momento o meu entendimento é de que substâncias como a cafeína altera o estado de sensibilidade do organismo de forma geral.

      Bruno, qdo vc menciona q altera a 'sensibilidade do organismo a estímulos relacionados ao estímulo reforçador (água)' entendo q neste caso já estamos falando de comportamento operante e portanto há uma história de reforçamento para os estímulos condicionados.

      Já uma substância como a cafeína ou o álcool alteram o estado de vigília (sensibilidade aumentada ou reduzida) do organismo no geral, por exemplo o jovem não somente ficará ativado para estudar como também para interagir com amigos na balada, diferentemente do caso da "privação de água"...o q vc acha?

      p.s. tem um livro bom de ler q aborda o tema sobre "Processos Sensoriais", da coleção ciências do comportamento os autores são: Alper; Lawrence; Wolsk...


      Abraços
      Carlos Esteves

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