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LAC-AC: Liga Acadêmica Curitibana de Análise do Comportamento

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Se essa criança se comporta assim... Em que fase ela está? Uma visão analítico-comportamental do desenvolvimento

(Texto escrito por Marjorie Wanderley - Assessoria de Comunicação LAC-AC)

Semana passada eu realizei um curso de Psicologia Hospitalar em um hospital infantil e frequentemente, durante as aulas teóricas, os professores falavam algo do tipo “Eu uso a classificação de fases do desenvolvimento X, mas você tem que usar a que está de acordo com a sua abordagem teórica”... E aí ficava fácil para quem utilizava a Psicanálise classificar as fases do desenvolvimento, para quem se baseava em Piaget ou Vigotski... Mas, e nós? Como podemos falar de fases do desenvolvimento infantil de modo que fique congruente com nossos princípios filosóficos?

Bom, como uma típica aluna de graduação desesperada, corri pedir ajuda por e-mail, e quem me deu uma luz foi a professora Ana Paula Viezzer, da UFPR, que recomendou a leitura de um capítulo excelente que pode nos ajudar a compreender e conversar sobre o assunto... Partindo do princípio de que essa pode ser a dificuldade de alguns de vocês também, vou aproveitar o texto da semana para falar um pouquinho sobre isso, partindo do capítulo que foi recomendado, ‘Uma abordagem analítico-comportamental do desenvolvimento’ de Laercia Abreu Vasconcelos.

Para começar, acontece que eu estava certa em ficar confusa. De fato, a Análise do Comportamento não trabalha com categorização de fases para o desenvolvimento infantil, então nós nunca iremos dizer “pelo o que eu observei, essa criança está na fase de desenvolvimento X, mas de acordo com sua idade, deveria estar na fase Y”. Vamos entender o porquê.

Voltando aos princípios da aprendizagem, fica fácil entender o conceito de desenvolvimento para a Análise do Comportamento – ele é explicado a partir de mudanças nas interações entre o indivíduo e o ambiente. Essas interações são bidirecionais – a ação do organismo altera aspectos do ambiente, e estes retroagem sobre o organismo. Esse processo de desenvolvimento não é entendido como unidirecional, ou seja, as crianças não sobem todas numa escadinha levando a uma única direção – inclusive essa é uma das críticas de Vasconcelos (2010), de que os manuais de Psicologia do Desenvolvimento focalizavam uma visão linear, fragmentada e descontextualizada. Pelo contrário, o desenvolvimento se dá pela história ambiental e é único, pertencente a um indivíduo - sendo assim, fica realmente difícil falarmos de fases do desenvolvimento comuns a todas as crianças, né?

Esse desenvolvimento, ainda, está sujeito à ação dos três níveis de seleção – filogenético, ontogenético e cultural. Esses três níveis estão sobrepostos e possuem uma grande complexidade, e por isso é tão difícil distinguir o que do desenvolvimento é inato, o que foi adquirido pela história de vida e o que foi instaurado pela cultura. A Análise do Comportamento não defende explicações puramente ambientais ou puramente genéticas, considerando que uma está continuamente sob influência da outra – embora o enfoque seja nas contingências, as bases biológicas do comportamento são utilizadas como complemento a qualquer análise.

Considerando que cada indivíduo é único em sua fisiologia, sua história de reforço e a cultura na qual está inserido, o desenvolvimento deve ser estudado a partir dos efeitos de cada variável ambiental sobre o comportamento de um indivíduo, utilizando o método de estudo das relações funcionais de delineamento experimental do sujeito como seu próprio controle. Sendo assim, para a Análise do Comportamento, o conceito de desenvolvimento não requer a formulação de uma teoria do desenvolvimento.

No entanto, isso não quer dizer que a nossa abordagem ignore o desenvolvimento infantil – o analista do comportamento também se dedica a investigar os processos relacionados aos padrões comportamentais, aquisição e manutenção de comportamentos e os estados estáveis de transição, e isso é feito justamente partindo do modelo de aprendizagem operante. Esse modelo é suficiente no sentido de, através da análise funcional, fornecer uma base teórica e metodológica para identificar mudanças comportamentais que compõem o desenvolvimento, indicando inclusive variáveis ambientais que possam gerar previsões e controle sobre padrões de comportamentos.

O método, portanto, seria o de avaliação funcional, enriquecido a partir da observação sistemática, que se dá por meio da descrição objetiva de comportamentos feita por observadores treinados. Essa observação fornece informações relevantes sobre a função de um comportamento em um determinado contexto. Além da análise funcional, os analistas do comportamento podem apoiar-se em dois conceitos para estudar o desenvolvimento – o primeiro deles é o de metacontingências, que são relações funcionais entre classes de operantes, nas quais o comportamento de um indivíduo pode ser uma ocasião ou uma consequência para o comportamento de outro indivíduo - por exemplo, as práticas culturais, que são compostas de comportamentos entrelaçados. Nesse sentido ressalta-se a importância de unidades sociais mais amplas, como família, escola e Estado no desenvolvimento infantil.

O segundo é o conceito de behavioral cusp (algo como ápice comportamental ou cunha comportamental), criado por Rosales-Ruiz e Baer (1997), que permite organizar o processo de desenvolvimento a partir do estudo de mudanças singulares na interação organismo-ambiente que ampliam o repertório comportamental do indivíduo – ou seja, alguns comportamentos ou contingências criam novos comportamentos, que interagem com novas contingências. O modo como isso acontece é uma mudança comportamental expondo o repertório do indivíduo a novos ambientes, especialmente a novos reforçadores e punidores. Um exemplo é o comportamento de engatinhar, que pode ser considerado uma cunha comportamental, no sentido de que possibilita a inserção do indivíduo em um novo contexto e em novas atividades, proporcionando o desenvolvimento diante de novas exigências. O desenvolvimento poderia ser avaliado a partir dessas etapas - comportamentos já presentes no repertório daquela criança, geradores de novos contextos que possibilitam outros comportamentos.

Skinner escreveu especificamente sobre o desenvolvimento, dizendo que se uma criança não se comporta mais como no ano anterior não é porque houve um desenvolvimento de sua mente, como dizia Piaget, ou de sua personalidade, como em Freud, mas sim porque justamente se comporta de modo diferente, não só porque cresceu, mas porque teve tempo de adquirir um repertório bem mais amplo através da exposição a novas contingências (Skinner, 1974/1993, p.60). Portanto, tratar do desenvolvimento significa analisar a aquisição de comportamentos e modificações em repertórios comportamentais ligados à interação do indivíduo com seu ambiente social e com ele mesmo (Alvarenga, 2006). Nesse sentido, fica difícil também falarmos de um déficit ou atraso no desenvolvimento utilizando manuais diagnósticos universais, já que o desenvolvimento é único. Essa dificuldade é ampliada a qualquer tipo de diagnóstico mental, na verdade (mais informações sobre psicopatologia na Análise do Comportamento, em Gongora (2003).

Sendo assim, o desenvolvimento é estudado pela Análise do Comportamento como um conjunto de interações organismo-ambiente e é dado de forma individual, de acordo com a história filogenética, ontogenética e cultural, não sendo, portanto, enquadrado em fases normativas. Embora seja um processo extremamente complexo e influenciado por diversas variáveis, é possível estudá-lo através de análises funcionais, enquadrando aquele indivíduo no que seria esperado de acordo com a previsão de padrões de comportamentos esperados para seu repertório comportamental. Ao meu ver, o fato de não nos basearmos em um manual comparativo de fases do desenvolvimento só ressalta a importância de nós, enquanto profissionais, termos uma base filosófica e teórica extremamente sólida, que esteja apoiando todas  as nossas análises e intervenções, para que possamos entender o desenvolvimento de uma criança de acordo com seu próprio repertório e no contexto na qual está inserida.

Referências
ALVARENGA, P. O desenvolvimento sócio-emocional nos primeiros anos de vida e as contingências em operação na interação pais-criança. In: Guilhardi, H. J. & Aguirre, N. C. de (Orgs.). (2006). Sobre comportamento e cognição: Vol. 18. Expondo a variabilidade. Santo André: Esetec.
GONGORRA, M.A.N (2003). Noção de psicopatologia em Análise do Comportamento. Em: Primeiros Passos em Análise do Comportamento e cognição. Costa, C.E, Luzia, J.C e Sant’ana, H.H.N Org.São Paulo: Esetec.
ROSALES-RUIZ, J.; BAER, D. M. Behavioral Cusps: A developmental and pragmatic concept for Behavior Analysis. Journal of Applied Behavior Analysis, v. 30, p. 533-544,1997.
SKINNER,  B.  F.  (1993).  Sobre o behaviorismo.  (M.  P.  Villalobos, Trad.).  São Paulo: Cultrix.  (Original publicado em  1974)
VASCONCELOS, Laercia Abreu ; NAVES, Ana Rita C Xavier; ÀVILA, Raquel Ramos . Uma abordagem analítico-comportamental do desenvolvimento. In: Emmanuel Zagury Tourinho e Sérgio Luna. (Org.). Investigações Históricas, Conceituais e Aplicadas em Análise do Comportamento. 1ed.São Paulo: Roca, 2010, v. 1, p. 125-151.

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