(Texto escrito por Alisson Lepienski, membro efetivo LAC-AC)
Desde a aparição dos primeiros jogos eletrônicos na década de 70, diversos grupos de estudiosos e de organizações sociais começaram a questionar a possível influência dessas atividades de lazer no comportamento e na sociedade. Os estudiosos, contudo, não são unânimes em suas opiniões: uma parte defende sua utilidade e benefícios para os jogadores, enquanto outra afirma que eles são capazes de destruir vidas e perverter os cidadãos.
Apesar das discussões, os jogos
não pararam de progredir e se tornaram cada vez mais complexos e capazes de
fazer com que os jogadores se engajassem cada vez mais em seu conteúdo.
“Viciado” começou a ser um termo bastante utilizado para descrever algumas
pessoas que passam algum (ou muito) tempo jogando. Em alguns casos, os
“viciados” deixam de fazer atividades essenciais do dia-a-dia para jogar. Em
casos extremos, o jogador pode morrer por passar muito tempo sem
realizar atividades vitais básicas. Obviamente, a psicologia e a
psiquiatria são questionadas sobre esses comportamentos desviantes do que é
considerado normal.
A American Psychiatry
Association (APA) publicou há pouco tempo a quinta edição do Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição (APA, 2014), uma das maiores
referências para psicólogos e psiquiatras para a classificação de transtornos
mentais. Além de modificações estruturais de seu sistema classificatório e
novas características diagnósticas para Transtornos Mentais (já estabelecidos
ou novos), o manual traz um capítulo intitulado “Condições para Estudos
Posteriores”. Nessa seção, condições específicas do comportamento humano são
descritas como possíveis classes diagnósticas, com o objetivo de
incentivar mais estudos sobre elas e avaliar a inclusão destas como transtornos
mentais em edições posteriores do manual. Assim, as classificações não se
destinam ao uso clínico, mas são conceitos que podem ser utilizados na
comunicação entre pesquisadores para produção de novos conhecimentos
científicos. Apesar dessa especificação, a importância dessa seção não deve ser
diminuída, pois faz o clínico atentar a aspectos importantes da relação do
sujeito com o seu mundo que poderão ser considerados patologias futuramente e
que podem trazer sofrimento no momento presente. Exemplos dos novos transtornos
propostos são: Transtorno do Luto Complexo Persistente, o Transtorno por Uso de
Cafeína e o Transtorno do Jogo pela Internet. Podemos perceber o incentivo da
APA para que profissionais da saúde mental continuem a estudar a questão
envolvendo jogos que não são considerados de azar.
O DSM-5 (APA, 2014) define que
o Transtorno do Jogo pela Internet é caraterizado por um prejuízo clinicamente
significante (ou ainda um sofrimento) decorrente do uso recorrente da Internet
para jogar, não sendo incluídos aqui os jogos de azar nem o uso de mídias
sociais, como o Facebook. A inclusão do critério do jogo ter caráter online
deve-se ao maior número de pesquisas realizadas com este tipo de jogo em
relação às pesquisas feitas com jogos off-line. O Manual alerta, contudo, que
jogos offline também podem trazer prejuízos para a vida diária.
Como possíveis “manifestações
comportamentais” desse transtorno trazidas pelo manual estariam: pensar no jogo
mesmo quando não esteja jogando, abstinência por não jogar, a necessidade
crescente de passar mais tempo jogando (tolerância), não conseguir controlar o
tempo que passa jogando (mesmo sabendo das perdas psicossociais causadas pelo
comportamento), perda de interesse por outras atividades anteriormente
prazerosas, mentir sobre o tempo que passa jogando, utilização dos jogos para
modificar um humor negativo ou ainda colocar em risco relações sociais, de
emprego ou educacionais em decorrência dos jogos.
Durante o presente texto,
analisaremos algumas contingências que estão possivelmente relacionadas a esta classe
diagnóstica. Pressupõe-se que o leitor já possui algum conhecimento sobre a
noção de psicopatologia na perspectiva Analítico Comportamental; caso não o
possua, sugere-se a leitura de Gongora (2003). As contingências descritas são
hipotéticas, e não representam todas as possibilidades dos motivos pelos quais
alguém joga excessivamente de maneira prejudicial. Uma análise da
psicopatologia de um indivíduo deve ser sempre idiográfica, percebendo a função
daquele comportamento no contexto histórico e individual.
Primeiramente, analisemos a
topografia descrita: a maior característica desse transtorno é que o
comportamento de jogar possui uma frequência muito aumentada em relação a
outros comportamentos. Jogar, por sua vez, é incompatível com muitos outros
comportamentos necessários para manter a própria ocupação, educação,
relacionamentos sociais ou até mesmo o próprio corpo em um estado aceitável. O
Transtorno, portanto, seria caracterizado pelo sujeito se engajar mais em
comportamentos relacionados ao jogo do que em comportamentos relacionados a
outros níveis da vida cotidiana.
Pode-se hipotetizar que o valor
reforçador do que é encontrado durante o jogo é maior e/ou mais imediato do que
é encontrado como consequência de outros comportamentos. Os jogos eletrônicos
são excelentes em demonstrar como o reforçamento imediato afeta e modifica a
frequência de nosso comportamento. Diferentemente da maior parte da vida
cotidiana, percebemos imediatamente a consequência de nossos atos nos jogos. Ao
realizarmos um movimento errado, perdemos uma vida; ao escolher uma das
alternativas dadas, percebemos como os outros personagens mudam seu
relacionamento conosco ou como as condições do jogo são alteradas. Com essas
consequências, nos tornamos mais capazes no jogo e conseguimos avançar ainda
mais nas suas fases, o que pode ser por si só extremamente reforçador.
Essas características dizem
respeito à maioria dos jogos, sejam eles online ou não. O que tornaria os jogos
online mais “aditivos”? Acredito que os jogos online possuem duas
características essenciais: eles não possuem um final determinado e eles
possuem um aspecto social muito maior. Os jogos online muitas vezes não possuem
um “objetivo final”, como uma fase ou um chefe final; eles não terminam. Assim,
muitas vezes, permitem um crescimento quase infinito, que faz com que o jogador
continue se engajando no jogo, mesmo depois de várias horas despendidas nele.
Outros objetivos possíveis são as tentativas de subir em rankings de jogadores.
Constantes atualizações nos modos de jogo, mecânicas e em mapas fazem com que o
jogador sempre tenha o que fazer e que seu lugar dentro de rankings não esteja
assegurado para sempre e tenha que continuar se engajando no jogo para o
manter.
O aspecto social do jogo, além
dos rankings, se dá pela necessidade de se associar a um grupo de jogadores.
Muitas das partidas são disputadas por um grupo de pessoas que deve agir
conjuntamente para obter a vitória sobre um grupo de inimigos. Assim, os jogadores
podem estabelecer entre si contingências de reforçamento e punição, com o
objetivo de melhorar o desempenho individual e do grupo. Assim, o jogador pode
passar mais tempo para conseguir atingir as metas determinadas pelo grupo.
Outro aspecto relevante a ser observado são as comunidades verbais
relacionadas ao jogo, as quais provêm reforçamento por façanhas e outros tipos
de habilidades demonstradas pelo jogador. É interessante notar, também, que a
comunicação é mais facilitada pelo uso de meios eletrônicos, já que muitas das
contingências que podem ser aversivas são retiradas (por exemplo, contato rosto
a rosto), o que diminui o custo de resposta relacionado a essas interações.
Pode-se perceber que os jogos e
suas comunidades possuem um grande número de mecanismos que podem fazer com que
o sujeito passe bastante tempo engajado em atividades relacionadas a eles. O
jogo online não possui apenas um meio de reforçamento, mas vários, o que o
torna um estímulo altamente reforçador. Desse modo, devido a esse valor
reforçador, o sujeito se engaja em diferentes comportamentos relacionados com o
jogo (falar, pensar, pesquisar sobre ele, por exemplo).
As características da
tolerância e da abstinência também seriam relacionadas aos próprios mecanismos
do jogo. A tolerância se daria pelo fato que para progredir nos jogos,
geralmente é necessário gradativamente maior engajamento. Exemplos clássicos
são os MMORPGS (Massive Multiplayer Online Role-playing Games), no quais o
número de inimigos requeridos para passar do nível 1 para 2 é pequeno, mas de
98 pra 99 gigantesco. Os esquemas de reforçamento aqui são muito importantes,
já que são importantes para a manutenção da resposta, mesmo em condições muito
exigentes. Inicialmente, temos reforçamento contínuo e depois, esquemas de
reforçamento cada vez mais complexos (refoçamento intermitente).
As relações estabelecidas pelo
sujeito com o jogo determinam não só suas respostas visíveis (sua “maestria” em
relação ao jogo), também o que ele sente e pensa sobre ele, tanto em relação a
sua frequência quanto em relação a sua intensidade. Efeitos da abstinência,
como maior agressividade ao ficar algum tempo sem jogar, poderiam estar
relacionados aos efeitos da privação e da extinção.
Podemos ter uma pequena noção
dos motivos para os jogadores se engajarem tanto nessa atividade e como os
jogos poderiam causar uma reação emocional tão grande do jogador. Mas o que
fariam com que os jogadores deixassem de emitir comportamentos relacionados ao
próprio bem-estar para jogar? Começamos aqui a analisar o caráter patológico do
comportamento de jogar, onde tal resposta começa a prejudicar a vida da pessoa
ou causar sofrimento.
A distribuição do comportamento
em determinadas classes comportamentais depende das relações estabelecidas
entre as contingências estabelecidas, o custo das respectivas repostas e a
relação entre tamanho do reforçador e a demora deste em relação a resposta.
Trocando em miúdos, “escolhemos” fazer algo dependendo do quão custoso é fazer
algo e o quão grande e quão rápido os resultados virão. Percebemos que os jogos
possuem diversos reforçadores que muitas vezes são rápidos. Além disso, os
jogos são muito bons em nos ensinar como agir efetivamente, aumentando a
complexidade de maneira progressiva e ensinando o jogador a ser hábil no jogo.
As contingências da “vida
real”, contudo, não são assim. Muitas vezes, no contexto educacional, de
trabalho ou mesmo de relacionamentos interpessoais, exige-se comportamentos com
alto custo de resposta e com consequências muito atrasadas ou pequenas. Um
relacionamento, por exemplo, exige respostas de envolvimento que podem ser
bastantes difíceis de serem emitidas, principalmente se durante a história
pessoal essas respostas foram punidas ou não foram ensinadas. Assim, há um
empobrecimento dos reforçadores existentes na vida cotidiana do jogador
decorrente das contingências ou de seu repertório ineficaz.
Outra possibilidade é de que os
jogos são um meio de o jogador se esquivar de situações ou sentimentos
relacionados ao meio não virtual. Os jogos, nesse sentido, podem ser utilizados
para diminuir sensações, sentimentos e pensamentos indesejados. Um jogador com
depressão ou ansiedade pode controlar esses sentimentos ao jogar ou progredir
em seu jogo. Não é incomum alguns jogadores, mesmo não patológicos,
“descontarem sua raiva” dentro de algum contexto virtual. O jogo, assim, pode
ser uma fuga de determinadas contingências aversivas da vida cotidiana do
jogador.
Aqui apresentei uma pequena parte
do que pode tornar um jogo tão viciante. Há, obviamente, diversos outros
mecanismos que podem fazer com que o jogador chegue a níveis patológicos de
uso. A maioria dos jogadores chegam a um nível patológico de uso de jogos, mas
é interessante notar como os processos comportamentais podem causar o que são
chamados “transtornos mentais”. Podemos perceber pela exposição que, mais uma
vez, os princípios básicos da análise do comportamento são capazes de analisar
classes diagnósticas, mesmo que novas.
Se as psicopatologias, novas ou
antigas, parecem seguir os mesmos princípios comportamentais dos comportamentos
ditos normais, qual seria a utilidade de novas classes diagnósticas? Apesar da
discussão ser longa, devemos pensar qual é a utilidade dessa classe diagnóstica
para os profissionais que a utilizarão. Pessoalmente, espero que a descrição da
classe diagnóstica “Transtorno de Jogo pela Internet” promova maiores estudos
sobre os efeitos psicológicos do jogo, benéficos ou não, e descreva fatores que
podem promover o uso patológico de jogos. Além disso, espero que a proposição
sensibilize os profissionais sobre as possíveis implicações do jogar
excessivamente e incentive a discussão sobre novas modalidades de tratamento.
Referências
American Psychiatry Association
(2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto
Alegre: Artmed.
Gongora, M. (2003).
Noção de Psicopatologia na Análise do Comportamento. In C. E. Costa, J. C.
Luzia, & H. H. N. Sant’Anna (Orgs.) Primeiros Passos em Análise do Comportamento
e Cognição. Santo André: Esetec.