LAC-AC

LAC-AC: Liga Acadêmica Curitibana de Análise do Comportamento

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Transtorno do Jogo pela Internet: uma breve perspectiva comportamental


(Texto escrito por Alisson Lepienski, membro efetivo LAC-AC)

Desde a aparição dos primeiros jogos eletrônicos na década de 70, diversos grupos de estudiosos e de organizações sociais começaram a questionar a possível influência dessas atividades de lazer no comportamento e na sociedade. Os estudiosos, contudo, não são unânimes em suas opiniões: uma parte defende sua utilidade e benefícios para os jogadores, enquanto outra afirma que eles são capazes de destruir vidas e perverter os cidadãos.

Apesar das discussões, os jogos não pararam de progredir e se tornaram cada vez mais complexos e capazes de fazer com que os jogadores se engajassem cada vez mais em seu conteúdo. “Viciado” começou a ser um termo bastante utilizado para descrever algumas pessoas que passam algum (ou muito) tempo jogando. Em alguns casos, os “viciados” deixam de fazer atividades essenciais do dia-a-dia para jogar. Em casos extremos, o jogador pode morrer por passar muito tempo sem realizar atividades vitais básicas. Obviamente, a psicologia e a psiquiatria são questionadas sobre esses comportamentos desviantes do que é considerado normal.

A American Psychiatry Association (APA) publicou há pouco tempo a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição (APA, 2014), uma das maiores referências para psicólogos e psiquiatras para a classificação de transtornos mentais. Além de modificações estruturais de seu sistema classificatório e novas características diagnósticas para Transtornos Mentais (já estabelecidos ou novos), o manual traz um capítulo intitulado “Condições para Estudos Posteriores”. Nessa seção, condições específicas do comportamento humano são descritas como possíveis classes diagnósticas, com o objetivo de incentivar mais estudos sobre elas e avaliar a inclusão destas como transtornos mentais em edições posteriores do manual. Assim, as classificações não se destinam ao uso clínico, mas são conceitos que podem ser utilizados na comunicação entre pesquisadores para produção de novos conhecimentos científicos. Apesar dessa especificação, a importância dessa seção não deve ser diminuída, pois faz o clínico atentar a aspectos importantes da relação do sujeito com o seu mundo que poderão ser considerados patologias futuramente e que podem trazer sofrimento no momento presente. Exemplos dos novos transtornos propostos são: Transtorno do Luto Complexo Persistente, o Transtorno por Uso de Cafeína e o Transtorno do Jogo pela Internet. Podemos perceber o incentivo da APA para que profissionais da saúde mental continuem a estudar a questão envolvendo jogos que não são considerados de azar.

O DSM-5 (APA, 2014) define que o Transtorno do Jogo pela Internet é caraterizado por um prejuízo clinicamente significante (ou ainda um sofrimento) decorrente do uso recorrente da Internet para jogar, não sendo incluídos aqui os jogos de azar nem o uso de mídias sociais, como o Facebook. A inclusão do critério do jogo ter caráter online deve-se ao maior número de pesquisas realizadas com este tipo de jogo em relação às pesquisas feitas com jogos off-line. O Manual alerta, contudo, que jogos offline também podem trazer prejuízos para a vida diária.

Como possíveis “manifestações comportamentais” desse transtorno trazidas pelo manual estariam: pensar no jogo mesmo quando não esteja jogando, abstinência por não jogar, a necessidade crescente de passar mais tempo jogando (tolerância), não conseguir controlar o tempo que passa jogando (mesmo sabendo das perdas psicossociais causadas pelo comportamento), perda de interesse por outras atividades anteriormente prazerosas, mentir sobre o tempo que passa jogando, utilização dos jogos para modificar um humor negativo ou ainda colocar em risco relações sociais, de emprego ou educacionais em decorrência dos jogos.

Durante o presente texto, analisaremos algumas contingências que estão possivelmente relacionadas a esta classe diagnóstica. Pressupõe-se que o leitor já possui algum conhecimento sobre a noção de psicopatologia na perspectiva Analítico Comportamental; caso não o possua, sugere-se a leitura de Gongora (2003). As contingências descritas são hipotéticas, e não representam todas as possibilidades dos motivos pelos quais alguém joga excessivamente de maneira prejudicial. Uma análise da psicopatologia de um indivíduo deve ser sempre idiográfica, percebendo a função daquele comportamento no contexto histórico e individual.

Primeiramente, analisemos a topografia descrita: a maior característica desse transtorno é que o comportamento de jogar possui uma frequência muito aumentada em relação a outros comportamentos. Jogar, por sua vez, é incompatível com muitos outros comportamentos necessários para manter a própria ocupação, educação, relacionamentos sociais ou até mesmo o próprio corpo em um estado aceitável. O Transtorno, portanto, seria caracterizado pelo sujeito se engajar mais em comportamentos relacionados ao jogo do que em comportamentos relacionados a outros níveis da vida cotidiana.

Pode-se hipotetizar que o valor reforçador do que é encontrado durante o jogo é maior e/ou mais imediato do que é encontrado como consequência de outros comportamentos. Os jogos eletrônicos são excelentes em demonstrar como o reforçamento imediato afeta e modifica a frequência de nosso comportamento. Diferentemente da maior parte da vida cotidiana, percebemos imediatamente a consequência de nossos atos nos jogos. Ao realizarmos um movimento errado, perdemos uma vida; ao escolher uma das alternativas dadas, percebemos como os outros personagens mudam seu relacionamento conosco ou como as condições do jogo são alteradas. Com essas consequências, nos tornamos mais capazes no jogo e conseguimos avançar ainda mais nas suas fases, o que pode ser por si só extremamente reforçador.

Essas características dizem respeito à maioria dos jogos, sejam eles online ou não. O que tornaria os jogos online mais “aditivos”? Acredito que os jogos online possuem duas características essenciais: eles não possuem um final determinado e eles possuem um aspecto social muito maior. Os jogos online muitas vezes não possuem um “objetivo final”, como uma fase ou um chefe final; eles não terminam. Assim, muitas vezes, permitem um crescimento quase infinito, que faz com que o jogador continue se engajando no jogo, mesmo depois de várias horas despendidas nele. Outros objetivos possíveis são as tentativas de subir em rankings de jogadores. Constantes atualizações nos modos de jogo, mecânicas e em mapas fazem com que o jogador sempre tenha o que fazer e que seu lugar dentro de rankings não esteja assegurado para sempre e tenha que continuar se engajando no jogo para o manter.

O aspecto social do jogo, além dos rankings, se dá pela necessidade de se associar a um grupo de jogadores. Muitas das partidas são disputadas por um grupo de pessoas que deve agir conjuntamente para obter a vitória sobre um grupo de inimigos. Assim, os jogadores podem estabelecer entre si contingências de reforçamento e punição, com o objetivo de melhorar o desempenho individual e do grupo. Assim, o jogador pode passar mais tempo para conseguir atingir as metas determinadas pelo grupo.  Outro aspecto relevante a ser observado são as comunidades verbais relacionadas ao jogo, as quais provêm reforçamento por façanhas e outros tipos de habilidades demonstradas pelo jogador. É interessante notar, também, que a comunicação é mais facilitada pelo uso de meios eletrônicos, já que muitas das contingências que podem ser aversivas são retiradas (por exemplo, contato rosto a rosto), o que diminui o custo de resposta relacionado a essas interações.

Pode-se perceber que os jogos e suas comunidades possuem um grande número de mecanismos que podem fazer com que o sujeito passe bastante tempo engajado em atividades relacionadas a eles. O jogo online não possui apenas um meio de reforçamento, mas vários, o que o torna um estímulo altamente reforçador. Desse modo, devido a esse valor reforçador, o sujeito se engaja em diferentes comportamentos relacionados com o jogo (falar, pensar, pesquisar sobre ele, por exemplo).

As características da tolerância e da abstinência também seriam relacionadas aos próprios mecanismos do jogo. A tolerância se daria pelo fato que para progredir nos jogos, geralmente é necessário gradativamente maior engajamento. Exemplos clássicos são os MMORPGS (Massive Multiplayer Online Role-playing Games), no quais o número de inimigos requeridos para passar do nível 1 para 2 é pequeno, mas de 98 pra 99 gigantesco. Os esquemas de reforçamento aqui são muito importantes, já que são importantes para a manutenção da resposta, mesmo em condições muito exigentes. Inicialmente, temos reforçamento contínuo e depois, esquemas de reforçamento cada vez mais complexos (refoçamento intermitente).

As relações estabelecidas pelo sujeito com o jogo determinam não só suas respostas visíveis (sua “maestria” em relação ao jogo), também o que ele sente e pensa sobre ele, tanto em relação a sua frequência quanto em relação a sua intensidade. Efeitos da abstinência, como maior agressividade ao ficar algum tempo sem jogar, poderiam estar relacionados aos efeitos da privação e da extinção.

Podemos ter uma pequena noção dos motivos para os jogadores se engajarem tanto nessa atividade e como os jogos poderiam causar uma reação emocional tão grande do jogador. Mas o que fariam com que os jogadores deixassem de emitir comportamentos relacionados ao próprio bem-estar para jogar? Começamos aqui a analisar o caráter patológico do comportamento de jogar, onde tal resposta começa a prejudicar a vida da pessoa ou causar sofrimento.

A distribuição do comportamento em determinadas classes comportamentais depende das relações estabelecidas entre as contingências estabelecidas, o custo das respectivas repostas e a relação entre tamanho do reforçador e a demora deste em relação a resposta. Trocando em miúdos, “escolhemos” fazer algo dependendo do quão custoso é fazer algo e o quão grande e quão rápido os resultados virão. Percebemos que os jogos possuem diversos reforçadores que muitas vezes são rápidos. Além disso, os jogos são muito bons em nos ensinar como agir efetivamente, aumentando a complexidade de maneira progressiva e ensinando o jogador a ser hábil no jogo.

As contingências da “vida real”, contudo, não são assim. Muitas vezes, no contexto educacional, de trabalho ou mesmo de relacionamentos interpessoais, exige-se comportamentos com alto custo de resposta e com consequências muito atrasadas ou pequenas. Um relacionamento, por exemplo, exige respostas de envolvimento que podem ser bastantes difíceis de serem emitidas, principalmente se durante a história pessoal essas respostas foram punidas ou não foram ensinadas. Assim, há um empobrecimento dos reforçadores existentes na vida cotidiana do jogador decorrente das contingências ou de seu repertório ineficaz.

Outra possibilidade é de que os jogos são um meio de o jogador se esquivar de situações ou sentimentos relacionados ao meio não virtual. Os jogos, nesse sentido, podem ser utilizados para diminuir sensações, sentimentos e pensamentos indesejados. Um jogador com depressão ou ansiedade pode controlar esses sentimentos ao jogar ou progredir em seu jogo. Não é incomum alguns jogadores, mesmo não patológicos, “descontarem sua raiva” dentro de algum contexto virtual. O jogo, assim, pode ser uma fuga de determinadas contingências aversivas da vida cotidiana do jogador.

Aqui apresentei uma pequena parte do que pode tornar um jogo tão viciante. Há, obviamente, diversos outros mecanismos que podem fazer com que o jogador chegue a níveis patológicos de uso. A maioria dos jogadores chegam a um nível patológico de uso de jogos, mas é interessante notar como os processos comportamentais podem causar o que são chamados “transtornos mentais”. Podemos perceber pela exposição que, mais uma vez, os princípios básicos da análise do comportamento são capazes de analisar classes diagnósticas, mesmo que novas.

Se as psicopatologias, novas ou antigas, parecem seguir os mesmos princípios comportamentais dos comportamentos ditos normais, qual seria a utilidade de novas classes diagnósticas? Apesar da discussão ser longa, devemos pensar qual é a utilidade dessa classe diagnóstica para os profissionais que a utilizarão. Pessoalmente, espero que a descrição da classe diagnóstica “Transtorno de Jogo pela Internet” promova maiores estudos sobre os efeitos psicológicos do jogo, benéficos ou não, e descreva fatores que podem promover o uso patológico de jogos. Além disso, espero que a proposição sensibilize os profissionais sobre as possíveis implicações do jogar excessivamente e incentive a discussão sobre novas modalidades de tratamento.

Referências
American Psychiatry Association (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed.
Gongora, M. (2003). Noção de Psicopatologia na Análise do Comportamento. In C. E. Costa, J. C. Luzia, & H. H. N. Sant’Anna (Orgs.) Primeiros Passos em Análise do Comportamento e Cognição. Santo André: Esetec.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

As leis que não “pegam”: os limites do Direito e as contribuições da Análise do Comportamento

  Texto escrito por Rafael Bucco Rossot
     Tornou-se comum a frase de que “certas coisas são iguais à jabuticaba, só ocorrem no Brasil”. A jabuticaba é uma árvore frutífera nativa do Brasil, e não obstante possa ser cultivada em qualquer lugar que ofereça condições climáticas e de solo favoráveis, acabou por se transformar em símbolo de fenômenos que seriam especificamente brasileiros. As leis que não “pegam” para muitos também estariam incluídas na “Teoria da Jabuticaba”.
     Para aclarar a análise urge esclarecer o que se entende por leis que não “pegam”. Segundo esta concepção há no Brasil leis que “pegam” e as leis que não “pegam”. Uma primeira aproximação, baseada no próprio significado que as expressões assumiram para o senso comum, revela-nos que as leis que “pegam” são representadas pelas normas jurídicas que são cumpridas e que as leis que não ”pegam” são representadas pelas não cumpridas [1].
Segundo o jurista chileno Eduardo Novoa Monreal, pode-se chamar de “Direito socialmente imperante” (ou regras de comportamento real na nomenclatura do autor) à normatividade jurídica que efetivamente é aplicada em um meio social determinado que difere do “Direito formalmente imposto” que é o que a autoridade estatal impõe mediante promulgação de regras obrigatórias de conduta e que nem sempre são efetivamente cumpridas [2]. Ou seja: a mera produção de leis pelo Estado não é condição suficiente para seu cumprimento.
O desafio, assim, encontra-se não apenas em descrever a situação, mas em descobrir as causas que governam estes comportamentos de não adequação generalizada à lei. É o que se pretende apontar de forma inicial neste artigo a partir da Análise do Comportamento.
     Entretanto, antes de propor o novo cabe avaliar o que já foi proposto em termos de explicação. A matéria tem sido abordada prioritariamente a partir do Direito. Esta é, portanto, mais uma temática da qual os psicólogos de forma geral – e os analistas do comportamento em especial – têm-se mantidos afastados.
        Para a doutrina jurídica, as leis prescrevem comportamentos. São comandos da ordem do “dever ser”, ou seja, ao contrário dos fenômenos naturais do mundo do ser - nos quais a relação de causalidade sempre se manifesta de forma necessária, como, por exemplo, a atuação da gravidade ao lançar um corpo -, no plano do “dever ser” admite-se que o comportamento regrado não seja atingido. A conduta humana, assim, pode se conformar ou contrariar a lei. Se não se conformar será aplicada a sanção. Em termos esquemáticos: Lei (L) implica na  Prescrição de Comportamento (C); Não-C implica em  Sanção (S).
     As sanções admitem múltiplas formas. No Direito Civil pode se apresentar, por exemplo, pelo pagamento de uma indenização pelo cometimento de um dano moral. No Direito Internacional a guerra, o boicote e a represália são sanções. No Direito Administrativo a suspensão de um servidor público. No Direito Penal a principal sanção é a pena privativa de liberdade. Exemplo: Artigo 121 do Código Penal (Lei) implica em  Não matar (Prescrição de comportamento - C); Matar (Não –C)  implica em  6 a 20 anos de reclusão (Sanção).
Considerada esta estrutura, uma lei será avaliada em três planos: validade, vigência e eficácia. No plano da validade deve ser avaliado se foram respeitados os procedimentos legais para sua elaboração. Exemplo: uma lei ordinária federal deve ser votada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Se for votada somente na Câmara, será inválida.
A vigência diz respeito ao tempo a partir da qual uma lei terá força vinculante. Por exemplo, o Estatuto do Idoso – Lei Ordinária Federal 10723/2003-, entrou em vigência somente 90 dias após sua publicação. Portanto, seus efeitos foram gerados somente a partir de sua vigência e não a partir do momento em que se tornou válida (data da publicação).
Por último, e o que mais interessa para os fins deste artigo, a eficácia que consiste “no fato real da aplicação da norma, tendo, portanto, um caráter experimental, por se referir ao cumprimento efetivo da norma por parte da sociedade” [4]. Assim, é no plano da eficácia que a teoria jurídica aborda a questão do não cumprimento da lei.
     Nesta parte da exposição poderia surgir a seguinte dúvida: se uma pessoa mata outra, isto significa que a lei (o artigo 121 do Código Penal) é ineficaz? Não. Apesar de existir certa imprecisão no conceito de ineficácia, admite-se que para uma norma ser ineficaz (não “pegar”), sua não observância deve ser generalizada, isto é, não basta o descumprimento pontual (o que é até esperado), mas sim se exige a não observância senão pela totalidade pelo menos pela maior parte dos seus destinatários [5].  
     Alguns exemplos de leis ineficazes podem tornar mais clara a exposição. Pergunta: você já jogou uma partida de truco na universidade? Em caso positivo saiba que ocorreu violação do artigo 50 da Lei de Contravenções Penais [6]. E isto independe de ter apostado dinheiro.
Foi a alguma festa na qual consumiu bebida alcoólica e promoveu escândalo ou saiu neste estado em vias públicas pondo em perigo a segurança própria ou de terceiros? Se sim, ocorreu violação do artigo 62 da Lei de Contravenções Penais, com pena de prisão simples de quinze dias a três meses [7]:
Art. 62. Apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
     Para o alívio de muitos, a partir da vigência da lei federal ordinária 9099/95, a sanção para “apresentar-se publicamente em estado de embriaguez” não mais gera prisão, assim como todas as outras prescritas nas quais a pena máxima não seja superior a dois anos. Nestes casos, uma transação penal permitirá a aplicação de outras sanções (como pagamento de multa ou prestação de serviços à comunidade).
     Interessante mencionar que a lei que “não pega” é uma contradição lógica. Pois a própria lei estabelece a conseqüência para seu descumprimento: a aplicação da sanção. Assim, se hipoteticamente toda a população do Brasil não obedecer a determinada lei, toda ela deverá ser sancionada. E não conhecer a lei não é excludente de aplicação da sanção, pois o próprio sistema possui uma “cláusula de fechamento” (se assim podemos chamar) que estabelece que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” [8].
        É até aí que vai o Direito. E é aí que os juristas param sem conseguir achar respostas. E é aí que os analistas do comportamento entram. A começar por uma compreensão mais abrangente da lei. Segundo Skinner, a lei é uma técnica de controle da agência governamental que, por sua vez, objetiva manipular conjuntos particulares de variáveis [9]. Um exemplo: o Estado precisa de recursos para se manter. Por tal razão cria leis tributárias, especificando em quais condições, em qual valor e em que momento o destinatário da lei terá que recolher tributos, assim como as conseqüências pelo seu descumprimento. Estabelece, assim, através da lei, os estímulos discriminativos antecedentes, a resposta que se espera (recolhimento do tributo) e os estímulos conseqüentes que acompanharam tanto a resposta de recolher o tributo quanto a de não recolher (que evidentemente é aversiva). A agência controladora estatal pode objetivar, também, controlar outros comportamentos, como a embriaguez. É o que fez (ou melhor, tentou fazer) ao criar o supracitado artigo 62 da Lei de Contravenções Penais.
     A crítica mais geral que pode ser feita a todo o sistema jurídico – e que pode ser identificada como uma das causas diretas das leis que não “pegam” - é a utilização praticamente exclusiva da punição para controle dos comportamentos. A utilização do reforço – que ficou conhecido no Direito como “sanção premial” por influência do teórico italiano Norberto Bobbio – é extremamente rara. Dois exemplos podem ser apresentados: a concessão de incentivos fiscais para empresas que se instalam em determinadas áreas como a Zona Franca de Manaus; e o pagamento por serviços ambientais, que consiste na remuneração de proprietários de áreas com interesse ecológico para que os mesmos não destruam os bens ambientais que se encontram em suas propriedades.
     Segundo Fred Keller [10] há algumas características da punição que a tornam desaconselhável. A partir de estudos com animais, pondera Keller que se “o animal punido for deixado na mesma situação de punição por um período de tempo suficientemente longo, mas sem o choque ou outro agente punitivo, recobrar-se-á dos efeitos”. Assim, se em cada esquina onde tivesse um bar, um policial recolhesse os embriagados (pelo artigo 62 da Lei de Contravenções Penais) e os submetesse a processo judicial, as conseqüências aversivas associadas à resposta de embriagar-se tenderiam a implicar na diminuição da probabilidade deste comportamento. Mas se abruptamente todos os policiais fossem removidos, o comportamento de embriagar-se tenderia a aumentar novamente.
Ressalte-se que esta questão não está longe de nosso cotidiano e não se aplica apenas às leis mais antigas (a Lei de Contravenções Penais acima citada é de 1941). A chamada “Lei Seca” de 2008 (tolerância zero de álcool para dirigir com retenção do veículo e apreensão da carteira de motorista) tem sido considerada por muitos como uma lei que “não pegou”, pois não teria contribuído para a redução de acidentes de trânsito e de pessoas flagradas dirigindo embriagadas.
Uma das explicações utilizadas – e que se coaduna com a Análise do Comportamento – é de que o comportamento-alvo almejado somente tem sido atingido com maior freqüência em locais onde a fiscalização é constante. Contudo, para driblar a fiscalização, aplicativos de celular como Waze Social que são alimentados com dados inseridos pelos usuários, permitem compartilhar locais onde estão ocorrendo as fiscalizações de trânsito (popularmente conhecidas como blitz). O uso destes aplicativos, assim, apresenta uma conseqüência reforçadora para o comportamento de beber e dirigir ao aumentar a probabilidade do usuário não ser punido pela embriaguez ao volante.
As leis representam modelos de controle do comportamento por regras.  Segundo Baum, “dizer que um comportamento é ´controlado´ por uma regra é dizer que está sob controle do estímulo regra, e que a regra é um certo tipo de estímulo discriminativo” [11]. Este estímulo discriminativo pode ser tanto falado quanto escrito, sendo as leis estatais todas escritas.
Neste aspecto outra crítica que pode ser feita à já mencionada legislação que prescreve que ninguém pode alegar desconhecimento da lei é que o comportamento governado por regras precisa necessariamente da comunicação de um falante ou conhecimento direto do texto escrito. Caso contrário será impossível se comportar como prescreve a lei (a não ser nas excepcionais hipóteses nas quais o mesmo comportamento tenha sido aprendido por modelagem por contingências de forma independente).
Segundo Skinner,
“ao dizer que ‘a ignorância da lei não exime culpa’, a agência governamental deixa o condicionamento de fato do indivíduo a outros. Pais e amigos estabelecem contingências menores que mantêm o comportamento dentro de limites legais, e a função governamental pode também ser ativamente apoiada pelo grupo ético e instituições religiosas e educacionais com suas técnicas apropriadas”. [12]
     Portanto, uma das hipóteses para a ineficácia de determinadas leis também pode ser encontrada no fato de que o Estado produz legislação, mas não se preocupa em torná-las efetivas. E se as outras agências controladoras do comportamento falham, o comportamento-alvo que se busca atingir através da lei apresenta menor probabilidade de ocorrer.
     Por último, entendemos que uma das principais causas para a ineficácia das leis é explicada pela concorrência de contingências conflitantes. Exemplo: cumprir toda a legislação trabalhista (e ter maiores gastos) ou não cumprir e responder por processos judiciais (sabendo, inclusive, que nem todos os trabalhadores irão ajuizar a ação). Ou: o cidadão sabe que beber poderá gerar pagamento de multa, mais suspensão do direito de dirigir e até processo criminal, mas mesmo assim entende que as conseqüências reforçadoras de beber com os amigos “pesa” mais do que o efeito da punição.
    
As leis que não “pegam” representam um dos maiores problemas sociais do Brasil. Mas não é problema exclusivo tupiniquim como aduz a “Teoria da Jabuticaba”. Pode ser que a questão se mostre mais evidente em nosso solo, mas se trata de um problema universal em todos os Estados nos quais a agência governamental utiliza as leis para controle do comportamento.
Portanto, constituiria elevada ambição apresentar uma solução única e irretocável para o problema das leis que não “pegam”. Assim, ao invés de finalizar com respostas, apresentar-se-ão mais questionamentos que podem contribuir para aclarar a questão: *Como construir um sistema jurídico com leis baseadas mais no reforço do que na punição? * Se a punição não poderá ser completamente abandonada – ao menos no curto prazo-, como equalizá-la com reforço positivo e negativo? *Há como utilizar outros reforçadores que não o dinheiro? Como? Como contrabalancear a utilização do dinheiro como reforçador generalizado com o limite da capacidade financeira do Estado; * O papel do contracontrole: se a população se manifestar contra a regulação do Estado (por exemplo, na questão da proibição dos jogos de azar), não apenas não cumprindo a legislação (como já ocorre), mas exigindo a expressa revogação da lei, não seria esta uma forma mais adequada de adaptar as leis à realidade? * Somente deve ser regulado por lei (comportamento governado por regras) questões consideradas essenciais para a coletividade? [13]. * Para todas as outras questões, o comportamento deveria ser modelado apenas pelas contingências? Estas sugestões poderão contribuir para tornar as leis eficazes ou estaríamos apenas “enxugando gelo”?  
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NOTAS
[1] Neste momento um breve aparte técnico-jurídico é necessário para diferenciar os conceitos de norma jurídica (que é gênero) do conceito de lei (que é espécie). Segundo a doutrina, “a norma jurídica é uma norma de conduta no sentido de que seu escopo direto ou indireto é dirigir o comportamento dos particulares, das comunidades, dos governantes e funcionários no seio do Estado e do mesmo Estado na ordem internacional” (DINIZ, 2003. p.250). As normas jurídicas são produzidas pelo legislador (Constituição, Leis Complementares, Leis Ordinárias, Medidas Provisórias, Decretos Legislativos e Resoluções conforme enumerado pelo artigo 59 da Constituição Federal de 1988), pelo juiz (ao proferir uma sentença, por exemplo) e também por particulares ao, por exemplo, firmarem um contrato. Portanto, o conceito de lei é espécie do gênero norma jurídica. Por sua vez, como mencionado, há vários tipos de produção legislativa. Assim, o conceito amplo de lei abrange todas as leis que são produzidas (a Constituição é uma lei, assim como as leis complementares, as leis ordinárias, as medidas provisórias, os decretos legislativos e as resoluções). Em sentido restrito somente seriam leis as leis ordinárias e as complementares. Neste artigo é utilizado o conceito amplo de lei quando se refere às leis que não “pegam”.
[2] MONREAL, 1988, p.23.
 [3] GUSMÃO, 2002, p.85-86.
 [4] DINIZ, 2003. p.395.
[5] Há que se ressaltar que não se estabeleceu até o momento critério estatístico para aferição quantitativa do que seria um “descumprimento generalizado”. Exemplo de critério quantitativo: se 60% dos destinatários descumprem a lei, ela é considerada ineficaz. Para estabelecer um critério há duas dificuldades: a primeira é mensurar quem cumpre e quem descumpre; e a segunda é chegar a um consenso quantitativo do que seria um patamar percentual para uma lei ser considerada ineficaz. Portanto, atualmente no Brasil, a classificação de uma lei como não cumprida (ineficaz; que não “pegou”) tem sido realizada de forma qualitativa pela opinião pública e por especialistas, mas sem critérios objetivos claros.
[6] Decreto-lei n.3688/1941. Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessivel ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local.
§ 3º Consideram-se, jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;
 [7] Lei de Contravenções Penais. Decreto-Lei 3668/1941.
[8] Artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4657/1942).
[9] SKINNER, 2003. p.363.
[10] KELLER, p.28.
[11] BAUM, p.165.
[12] SKINNER, 2003. p.370.
[13] No divertido livro É proibido amarrar jacarés aos hidrantes: 101 leis totalmente estúpidas, é mencionada a lei do município de Belton, Missouri, EUA, que tornou ilegal travar batalhas de bolas de neve. (p.29). No Estado da Carolina do Sul é proibida qualquer mensagem escrita ou comunicação verbal com caráter obsceno, profano, indecente, sugestivo ou imoral para uma mulher, mesmo que ela seja sua esposa ou sua namorada (p.36). Estes exemplos permitem questionar se o Estado não deve se circunscrever a legislar em matérias delimitadas e se esta extrapolação não seria também uma das causas mediatas da ineficácia de muitas leis.
[14] Assim, não precisamos (e nem é relevante para a sociedade) que se aprenda que não se deve matar através da modelação por contingências. Enfim, através dos comportamentos governados por regras não precisamos matar alguém para descobrir posteriormente suas conseqüências aversivas. Se a questão é uma batalha de bolas de neve, contudo, a modelagem deve ser por contingências. Enfim: o Estado deve ter um limite nas questões em que pode legislar.
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REFERÊNCIAS
BAUM, Willian M. Compreender o Behaviorismo. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.15ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
KELLER, Fred S. Aprendizado: teoria do reforço. São Paulo: E.P.U, 1973.
KOON, Jeff; POWELL, Andy. É proibido amarrar jacarés aos hidrantes: 101 leis totalmente estúpidas. São Paulo: Matrix, 2008.
MONREAL, Eduardo Novoa. O Direito como obstáculo à transformação social. Tradução de Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Fabris, 1988.
SKINNER, B.F. Ciência e Comportamento Humano. 11ª ed.São Paulo: Martins Fontes, 2003.