LAC-AC

LAC-AC: Liga Acadêmica Curitibana de Análise do Comportamento

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Como se mantém o comportamento religioso ?

(Texto escrito por Caroline Molinari - membro LAC-AC)

Mesmo que não seja adepto de nenhuma religião, você provavelmente conhece pessoas que são. Independente de qual seja a sua crença, as chances são grandes que você já tenha  se perguntado o que seria o comportamento religioso, ou tentado entender como ele ocorre - sendo uma pessoa religiosa, com o objetivo de entender melhor o próprio comportamento, e se não acredita, para tentar compreender como as outras pessoas têm esse comportamento.

Do ponto de vista da análise do comportamento, as atitudes religiosas não diferem em nada do restante do comportamento humano, sendo assim, também são passíveis de análise. Como a diversidade de crenças é alta existem várias formas de se relacionar com a religião. Entendendo a impossibilidade de trabalhar com todas foi escolhido focar no comportamento de um cristão, pois assim se estaria mais perto da realidade brasileira.  A religião cristã é baseada na premissa de que se você tiver boas atitudes, quando morrer, irá para o Paraíso, caso contrário irá para o Inferno. Para ajudar as pessoas a emitirem o comportamento que as levaria para o Céu existem algumas “Leis da Igreja”, também chamadas de mandamentos.

Existem duas relações comportamentais básicas que mantém o comportamento religioso, entretanto somente as duas não seriam suficientes para preservar o comportamento durante toda uma vida. Essas duas seriam: o reforço positivo de ir para o Paraíso e a punição positiva de ir para o Inferno. O reforço positivo ocorre quando o acréscimo de um estímulo aumenta a frequência de um determinado comportamento. Nessa situação, o acréscimo do estímulo positivo só ocorreria muito tempo depois da ação que ele estará reforçando. Por ir todo domingo na Igreja e seguir os mandamentos João irá para o Céu, por mais que isso só aconteça  muito tempo depois de João ter praticado todas essas ações o fato de ele ir para o Céu é uma consequência direta delas. Existe uma relação de contingência SE/ENTÃO na situação apresentada; se João for para a Igreja todo domingo e seguir os mandamentos, então ele irá para o Céu. A punição positiva aparece de forma semelhante. Já que a punição positiva seria adicionar um estímulo que diminuí a frequência do comportamento podemos aplicar a mesma lógica empregada para analisar o Paraíso como reforço positivo para entendermos o Inferno como punição positiva. Se João tiver realizado ações que sua comunidade religiosa considera erradas ele irá para o Inferno. Também percebemos uma relação de contingência aqui; se João fizer as ações consideradas erradas, então ele irá para o Inferno. É importante destacar que  nem o reforço nem a punição aconteceriam durante a vida da pessoa. Os dois ocorreriam depois de sua morte, tornando assim as consequências inexistentes em sua vivência.

O motivo pelo qual somente essas duas relações comportamentais não são suficientes é que elas não ocorreriam em vida e quanto mais tempo levar para um comportamento produzir suas consequências menor vai ser o caráter reforçador/punitivo. Ou seja, tanto a promessa do Paraíso quanto a ameaça do Inferno tem pouca capacidade de reforçarem/punirem um comportamento. Para elas atingirem seus objetivos - fazer a pessoa continuar acreditando na Igreja - essas promessas também são associadas à reforços sociais e regras da instituição(mandamentos), sendo assim esses reforços e  regras adquirem um caráter de extrema importância para manutenção do comportamento religioso.

O reforço que a sociedade dá para as práticas religiosas é de suma importância para mantê-la, já que somente o Céu e o Inferno não conseguem assegurar o comportamento religioso sozinhos.  A sociedade atua principalmente no reforço do cumprimento dos mandamentos. Pois, quando alguém tem uma ação que condiz com o que está definido nas leis religiosas essa pessoa é reforçada positivamente por sua comunidade. Dessa maneira as atitudes religiosas vão sendo mantidas aos poucos, as pessoas que partilham da mesma fé a incentivam a continuar se comportando de acordo com os mandamentos e por esse reforço ocorrer é mais provável que a ideia de Paraíso sirva como reforçadora.

O reforço social também tem caráter importante quando se discute as diferenças entre o controle pelas regras religiosas e pelas regras estatais. Enquanto é pouco provável que você seja reforçado por cumprir uma lei civil - não matar alguém - as chances da sua comunidade religiosa reforçar um jejum ou um celibato são altas. Outra diferença entre esses dois conjuntos de normas é o fato que as regras divinas são mais passíveis de serem auto-reforçadas - quando mesmo que a comunidade não reconheça que a pessoa não quebrou o  código ela se sente bem por não tê-lo feito. Por mais que a pessoa seja mais reforçada por seguir as regras religiosas do que as do estado, algumas das proibições da Igreja são muito mais difíceis de se cumprir do que leis civis. Isso se dá com os mandamentos que não envolvem apenas atos. Um exemplo seria o nono mandamento (Não desejarás a mulher do próximo) onde a proibição também acontece a nível de pensamento, tornando assim mais difícil a realização desse mandamento.

Por fim, é importante ressaltar que o comportamento religioso não se limita ao apresentado aqui.  Existem muitas outras religiões, cada uma com pelo menos uma forma diferente de comportamento estabelecido para seus adeptos. O próprio cristianismo tem outros comportamentos envolvidos. Cada grupo religioso representa uma nova análise.

Referências :

Moreira, M.B.; Medeiros, C.A. (2007). Princípios básicos de analise do comportamento. Porto Alegre: Artmed.

Rodrigues, T. S. P., & Dittrich, A. (2007). Um Diálogo entre um Cristão Ortodoxo e um Behaviorista Radical. Psicologia: Ciência e Profissão, 27(3), 522-537.
Skinner, B.F. What religion means to me. Free Inquiry, Spring, 7, 12-13. 1987.

sábado, 27 de setembro de 2014

Como os jogos “clicker” funcionam

(Texto publicado por Guilherme Pawoski Hunzicker - Membro LAC-AC)
Antes de tudo, a análise feita a seguir pode ser aplicada, adaptando à mecânica, a vários jogos do estilo “clicker”.
Há algumas semanas fui apresentado ao jogo Clicker Heroes, é um jogo simples, porém muito viciante. Funciona basicamente assim: o jogador clica nos monstros que aparecem na tela (por isso o nome clicker) até matá-los, fazendo assim com que receba certa quantidade de dinheiro. O que podemos comprar com o dinheiro são os heróis para nos ajudar a matar os monstros mais rapidamente, além disso, é possível comprar habilidades e subi-los de nível para deixar os heróis mais fortes. Ao matar 10 monstros em cada ilha, avançamos para a próxima e matamos mais 10 e a cada cinco níveis há um monstro mais forte, um “chefe”. O jogo prossegue dessa maneira sempre.
Depois de alguns minutos meu amigo me perguntou mais ou menos isso: o que torna esse jogo tão viciante? Porque continuamos jogando mesmo que saibamos que não estamos nos divertindo? Para tentarmos buscar essa resposta na Análise do Comportamento, primeiro precisamos entender o conceito de reforço. Reforço é um tipo de consequência de comportamento que aumenta a frequência do comportamento que o produziu. Ou seja, o organismo, em determinado ambiente, emite uma resposta, que tem uma consequência e nesse exemplo é reforçadora. Aplicando esse conceito ao jogo, cada vez que evoluímos um herói, passamos para a próxima ilha de monstros, matamos um “chefe”, liberamos novos heróis, conseguimos comprar novas habilidades para tonar os heróis mais fortes, etc. é possível dizer que são eventos reforçadores para o comportamento geral de jogar Clicker Heroes.
        Este é um jogo que, de início, é extremamente reforçador, pois nele é muito fácil evoluir os heróis, ganhar habilidades, enfim, prosseguir de maneira rápida. Com o tempo percebemos que tal facilidade para prosseguir está diminuindo, tudo está ficando mais caro, a compra de um ou dois heróis a mais não faz muita diferença e os “chefes” demoram mais para morrer, chegando a um ponto em que a espera para acumular o dinheiro necessário que possibilita a progressão é muito alta, podendo chegar a algumas horas de aguardo. Sendo assim, porque continuamos jogando se nosso comportamento demora muito mais para produzir efeito reforçador e este é mais difícil de alcançar?
        Novamente é necessário explicar outro conceito da análise do comportamento: o conceito de reforçamento intermitente. Por intermitente entende-se que é algo que não possui continuidade, evento que há pausas ou também algo salteado. Sendo assim reforçamento intermitente é quando nossos comportamentos são reforçados de maneira alternada. É possível dizer também que apenas alguns comportamentos que emitimos são reforçados, enquanto outros não são. Nas palavras os autores Moreira e Medeiros (2007, p. 139) “Isso quer dizer que muitos dos nossos comportamentos são apenas intermitentemente reforçados; portanto, um comportamento não precisa ser reforçado todas as vezes em que ocorre para continuar sendo emitido.” No início do Clicker Heroes a compra de heróis é muito significativa, muito reforçadora, e todos os comportamentos que emitimos para adquiri-los são reforçados. Com o passar do tempo e progressão no jogo, os preços aumentam, a dificuldade aumenta. Comprar apenas um herói não é mais suficiente, esse comportamento não é mais reforçado. Porém ao adquirirmos 10 heróis de uma só vez, que é um comportamento parecido, mas com algumas propriedades diferentes, (como a quantidade de dinheiro necessário e o tempo de espera para acumular tal dinheiro) tal comportamento é reforçado. Nesse caso, o custo de resposta é maior, ou seja, é necessário mais esforço para emitir o comportamento de comprar 10 heróis. Temos que nos esforçar cada vez mais para produzir reforço.
        Neste exemplo, pode-se dizer que o tipo de reforçamento intermitente que ocorre é o de intervalo fixo, ou seja, é necessário que o jogador espere determinado tempo (digamos duas horas) para que o efeito reforçador seja produzido, nesse caso a quantia de dinheiro necessária para a próxima aquisição importante. Agora pensemos o seguinte: os preços são cada vez mais altos e os “chefes” são cada vez mais fortes, consequentemente o tempo de espera aumenta de maneira gradativa, discretamente e de modo relativamente lento, assim o tempo que esperávamos anteriormente, duas horas, num piscar de olhos tornam-se quatro, cinco, seis horas de espera, para que finalmente tenhamos dinheiro suficiente para uma compra significativa. Se a mudança de dificuldade fosse muito brusca, provavelmente os jogadores desistiriam facilmente do jogo e/ou ele teria muito menos adesão.
        Posto isso pode surgir a dúvida: mas então porque ou como paramos de jogar, se é tão viciante assim? É importante notar que, se no início da jogatina o custo de resposta (esforço para realizar o comportamento) era baixo, depois do avanço no jogo o custo de resposta se torna altíssimo, afinal o efeito reforçador só é produzido com uma espera de várias horas, dessa maneira não compensa mais manter tal comportamento. Tal questão acerca do custo de resposta muito alto pode ser observada em outros âmbitos de nossas vidas, como quando nos é pedido algum trabalho escolar ou acadêmico em que percebemos que a nota atribuída à realização do trabalho não compensa o empenho a ser empregado.
        Por fim, existem algumas críticas e questionamentos acerca do tema apresentado, no sentido de até que ponto vale apena criar um jogo que não seja necessariamente divertido, mas que tem o propósito de ser viciante, por quaisquer interesses que estejam por trás disso. Todavia tais críticas não serão abordadas no presente texto, mas os leitores que se sentirem confortáveis estão convidados em discutir através dos comentários.


Referências

Moreira, M. B., & de Medeiros, C. A. (2007). Princípios básicos de análise do comportamento. Artmed.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa filosofia” (?)

(Texto escrito por Rafaela Domingues - Membro LAC-AC)

A famosa frase de Hamlet, personagem da peça de Shakespeare, “A trágica história de Hamlet, o príncipe de Dinamarca”, demonstra o que muitas vezes acontece quando não sabemos dar explicação a algo ocorrido em nossas vidas: atribuímos o fato a algo fora da compreensão humana. Na peça, Hamlet recebe visitas do fantasma de seu falecido pai, e em um dos trechos da obra, a personagem diz a Horácio, numa tentativa de convencê-lo a fazer um juramento ao espectro de seu pai, que entre o céu e a terra havia muitos mistérios. Bem, em nosso cotidiano é fácil encontrar momentos em que, muitas vezes, classificamos como misterioso aquilo que consideramos sem explicação. Um bom exemplo são os comportamentos supersticiosos, que no senso comum possui caráter metafísico.

Quem nunca teve uma camiseta da sorte, que sempre ao usar, o amado time de futebol ganha a partida ou já teve receio de cruzar com gato preto na rua, passar por baixo de uma escada, alegando dar azar? Ainda, quem nunca espantou visita colocando uma vassoura atrás da porta? São vários os exemplos e a análise do comportamento tem uma explicação para isso.

Antes de falar sobre comportamento supersticioso é preciso diferenciar alguns conceitos: contingência e contiguidade temporal. Contingência possui vários significados, nos dicionários aparece como algo que pode ou não suceder, incerto. Na análise do comportamento a definição de contingência é complexa. De acordo com Skinner (1953;1969), (citado por Souza, 2000, p. 126), “em sentido geral, contingência pode significar qualquer relação de dependência entre eventos ambientais ou entre eventos comportamentais e ambientais”. Por exemplo, ao pegarmos uma garrafa de água e girarmos a tampa, vamos abri-la. Um meio para identificar uma contingência é utilizar o enunciado SE..., ENTÃO.... Segundo Todorov (1989, p. 354, citado por Souza, 2000), a cláusula “se” pode especificar algum aspecto do comportamento ou do ambiente e a cláusula “então” especifica o evento ambiental consequente. Sendo assim, voltando ao exemplo, SE girarmos a tampa da garrafa, ENTÃO vamos abri-la. Neste caso deve haver uma relação de dependência entre girar a tampa da garrafa e abri-la.

Diferentemente, a contiguidade temporal (denominada contingência acidental, por Skinner) se constitui apenas por justaposição de eventos no tempo, sem levar em consideração a relação de causa. Em outras palavras, dois eventos ocorrem, como por exemplo, uma pessoa desce do ônibus e começa a chover, mas não há nenhuma relação de causalidade, há, apenas, uma mera proximidade temporal, um evento apenas sucede o outro. Aplicando o enunciado de uma contingência (“se...,então...”) é fácil verificar que neste exemplo não há uma relação real contingencial: se eu descer do ônibus, então começa a chover. Claramente se vê que não há dependência e nem relação causal entre descer do ônibus e o início da chuva.

Os últimos pontos a serem enfatizados antes de entrar no comportamento supersticioso são o comportamento operante e o reforço. O comportamento operante é aquele em que ao emitir uma resposta, consequências são produzidas, isto é, modificações no ambiente, e é afetado por elas. Por exemplo, quando estendemos o braço para alcançar um livro que está sob a mesa: emitimos um simples comportamento, o de esticar o braço (resposta) e obtemos uma consequência, a alteração do lugar do livro (modificação no ambiente). Essas modificações no ambiente podem afetar a ocorrência do comportamento no futuro. Se a frequência de determinado comportamento aumentar, ou seja, voltar ocorrer diante das mesmas contingências, significa que foi reforçado. Dessa forma, podemos chamar de reforçador todo evento que aumentar a probabilidade de ocorrência do comportamento. No exemplo acima, o fato de conseguir alcançar o livro ao esticar o braço é reforçador.

Esclarecidos alguns conceitos, podemos entender como alguns comportamentos supersticiosos ocorrem. Skinner, em seu livro Ciência e Comportamento Humano (Skinner, 1953/2003), discute sobre esse assunto utilizando um experimento com pombos. Pombos eram colocados em caixas e em um intervalo de 15 segundos recebiam uma pequena quantidade de comida (reforço), porém não havia uma resposta especifica a ser emitida pelo pombo para que fosse reforçado, ou seja, a cada 15 segundos o pombo recebia comida independentemente da maneira que estivesse se comportando.

Passado o primeiro intervalo de tempo, o pombo recebe o reforço no mesmo momento em que estava se comportando de alguma maneira, por exemplo, esticando o pescoço. Dessa forma, tornava-se mais provável que este mesmo comportamento, esticar o pescoço, se repetisse quando recebesse a comida novamente. E assim, com o aumento da frequência de uma mesma resposta, esta seria reforçada várias vezes e então o comportamento supersticioso, o de esticar o pescoço, seria agregado ao repertório do pombo. Porém, a topografia (forma) do comportamento pode ser modificada com outros reforços, pois modificações no momento da emissão da resposta podem ser coincidentes com o recebimento da comida. Em síntese, o comportamento supersticioso é adquirido e mantido por relação acidental com reforço.

Trazendo esses conceitos para o comportamento humano, o mesmo acontece. Tomemos o exemplo da camiseta da sorte. Aquele torcedor ‘’roxo’’ veste a camisa do seu time preferido para assistir aos jogos e acaba se deparando com a vitória do time. A vitória torna-se reforçadora para o uso da camisa. E, muito provavelmente, nos próximos jogos o torcedor a vista novamente. Com o passar das partidas e as eventuais vitórias o torcedor atribui à camiseta tal acontecimento. Um bom exemplo recente disso no futebol é o técnico da seleção brasileira nesta copa de 2014, Felipão, que mesmo com o calor de 30ºC de Fortaleza, no jogo contra o México, usava o agasalho azul da seleção. Em uma entrevista dada ao Sportv¸ quando questionado sobre o agasalho ele diz: “"Eu uso porque é de praxe. Se não usar, parece que falta alguma coisa, falta um amuleto". O leitor pode questionar “mas o Brasil empatou com o México nesse jogo, como fica o efeito reforçador?”. Quando uma resposta supersticiosa estiver estabelecida, sobreviverá mesmo quando só esporadicamente reforçada (Skinner, 1953/2003), e é por isso que mesmo com o empate a presença do ‘’amuleto’’ do Felipão ainda é frequente nas demais partidas.

E o gato preto, será mesmo que o pobre felino é o culpado pelo azar do nosso dia? Bem, em termos comportamentais, veremos que não. Ao cruzarmos com um gato preto na rua e, suponhamos, pouco tempo depois tropeçamos e acabamos caindo, ora, é óbvio que é culpa do gato. Uma vez que, após encontro com o gato preto, levamos um tombo, essa queda torna-se uma espécie de confirmação para o fato de o felino trazer azar. A partir de então, é bem provável que sempre que avistarmos um gato preto, logo em seguida comecemos a associar esse evento a fatos negativos que o sucedam, em outras palavras, inicia-se uma busca pelo azar. A proximidade temporal é, novamente, um ponto importante para entender esse exemplo. Vamos aplicar o enunciado da contingência, como vimos anteriormente: SE cruzarmos com um gato preto, ENTÃO levaremos um tombo (ou qualquer outra coisa considerada ruim). Posto dessa forma não fica evidente uma relação de causa, não há dependência entre os dois eventos.

Por outro lado, segundo Skinner, nem todo comportamento supersticioso evolui para as chamadas superstições. De acordo com o autor “os ritos supersticiosos na sociedade humana geralmente incluem fórmulas verbais e são transmitidos como parte da cultura” (Skinner, 1953/2003, p. 96). Assim, mesmo diferindo em relação ao reforçamento acidental, os rituais supersticiosos são explicados através da tradição ou práticas culturais, que são passadas de geração a geração e acabam reforçadas ao serem praticadas, dando continuidade ao ritual.  Um exemplo são os talismãs ou amuletos, aquela medalhinha que era do avô, que ele dizia trazer sorte e que como parte da cultura da família é passada de pai para filho com a mensagem de boa sorte, dando continuidade a um ritual supersticioso.

Em suma, nem sempre as consequências que percebemos possuem uma relação de causalidade com a forma com que nos comportamos, é preciso estar atento aos eventos consequentes para não cairmos em armadilhas e emitir comportamentos que não são eficientes. Portanto, ao contrário do que disse Hamlet, entre o céu e a terra não há tantos mistérios assim.

REFERÊNCIAS

Skinner, B. F. (2003). Comportamento Operante. In B. F. Skinner, Ciência e Comportamento Humano (pp. 93-96). São Paulo: Martins Fontes.
Keller, F. S. (2003). Comportamento Supersticioso. In F. S. Keller, Aprendizagem – Teoria do reforço (pp. 23-24). São Paulo: E.P.U.
Souza, Deisy das Graças de. (2000). O conceito de contingencia: um enfoque histórico. Temas em Psicologia, 8(2), 125-136. Recuperado em 09 de agosto de 2014, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2000000200002&lng=pt&tlng=pt.
http://globotv.globo.com/sportv/copa-2014/v/satisfeito-com-apresentacao-felipao-diz-foi-um-jogo-muito-disputado-e-bom/3427432/, acessado em 30 de julho de 2014, às 11h55.
O que é contingência? - http://www.itcrcampinas.com.br/txt/texto_deisy.pdf acessado em 30 de julho de 2014, às 10h18.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Learning curve: é reforçando ou punindo que se aprende?

(Texto escrito por Maira Lima - Membro LAC-AC)

No total de 40 países analisados, o Brasil  ocupa a  38ª posição nos rankings de leitura, matemática e ciências. A educação é uma grande preocupação de sociedades modernas; sua qualidade é avaliada mundialmente com medidas como desempenho escolar, níveis de repetência ou desistência, etc. Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os relatórios produzidos pela Pearson e, também, pela EIU (Economist Intelligence Unit) (BBC online, 2014). O nível de repetência é consideravelmente numeroso. Esses dados são consequência do baixo desempenho de alunos da rede pública de ensino. A bola de neve chegou ao ponto de se falar sobre a “geração de diplomas”, resultado de indivíduos que ao longo da vida escolar deixam os estudos sempre de lado. Chegam a garantir o diploma, porém a qualificação que o mercado pede, simplesmente fica em segundo plano (BBC online, 2013).

Diante desses fatos, eis que surge a pergunta: “Afinal, de quem é a culpa?”. 91% dos professores brasileiros alegam que as causas do baixo desempenho escolar são a falta de interesse dos alunos, o meio em que o aluno vive e a falta de acompanhamento dos pais (Lima, 2013, Gazeta do Povo). Enquanto isso, os pais culpam a escola. No fim ambos se unem para culpar o governo.

Enquanto isso, na Ásia, famílias de classe média e rural fazem o que podem e, até mesmo, o que não podem para garantir o melhor ensino para os filhos. Para garantir a inserção dos filhos em uma boa universidade, as famílias asiáticas têm acumulado dívidas com atividades extracurriculares e mensalidades de escolas privadas. Nos Estados Unidos, cresce o número de famílias que optam pela educação domiciliar. Os pais demonstram preocupação com a insegurança, bullying e a má qualidade de ensino na rede pública. A eficiência dessa prática é verificada nos resultados da prova nacional de avaliação.

É notável o contraste existente no ensino e aprendizagem de diversos países. Precisamos levar em consideração a diversidade cultural, as necessidades e demandas de cada população. Cada grupo aplica a metodologia que determina ser mais adequada para que ocorra uma aprendizagem significativa, tornando- se necessário a utilização de ferramentas inéditas, dinâmicas e inovadoras para o ensino.

Nesse contexto, ciências como a Psicologia têm estudado formas de tornar o ensino mais proveitoso e relevante, com técnicas novas. Nesse viés, a análise do comportamento traz grandes contribuições para o âmbito da educação. No que diz respeito à análise aplicada, cabe, dentre outros recursos, o uso de filmes que possibilitem a discussão dos princípios behavioristas em situações do cotidiano. Partindo desse ponto, o presente texto apresenta como proposta a análise do filme Enjaulados (Detention/Learning curve, 1998), o qual possibilita a observação de inúmeros conceitos da análise do comportamento, como esquemas de reforçamento, contingências aversivas, dentre outros, e a influência destes nos padrões de comportamento dos personagens.

O filme apresenta uma história fictícia que se passa em uma escola do subúrbio dos Estados Unidos, na qual alunos de uma determinada turma apresentavam comportamentos ditos como inadequados (agressivos, descomprometidos, dentre outros), e esses padrões eram mantidos pelas contingências presentes nesta instituição de ensino. Devido ao afastamento da professora titular, o professor William Walmsley (interpretado pelo ator John S. Davies) é convidado a ser professor substituto nessa escola. Inicialmente o professor tenta modificar o comportamento destes alunos, fazendo uso dos recursos disponíveis, contudo sem sucesso, pois esbarra na influência e manutenção do meio no comportamento destes. Opta então por levar sete alunos a um lugar isolado que permite a utilização de diferentes estratégias de ensino para mudar o comportamento dos mesmos, permitindo o ensino de conteúdos escolares e de outros repertórios. Contudo, as estratégias adotadas pelo professor consistem basicamente no uso de contingências aversivas, o que permite a discussão da eficácia ou não destas, seja através da retirada de algo reforçador ou apresentação de estímulos aversivos. Mas o por quê do uso da punição? Será que punimos alguém cujo comportamento consideramos como ruim, prejudicial para o meio onde nos encontramos, apenas com o intuito de reduzir a frequência deste comportamento inadequado? Este filme permite o início da discussão e reflexão destas questões, ilustrando os diferentes efeitos da punição nos comportamentos dos personagens.

Em certo momento os estudantes são despidos e presos em uma jaula eletrizada com subdivisões, e são despertados com uma música que toca ininterruptamente. Os alunos ainda permanecem um longo período de tempo sozinhos com Hey Mickey (Toni Basil) tocando continuamente.

Os alunos tentam abrir a jaula, mas ao tocarem as barras , recebem uma descarga elétrica. Uma mudança no ambiente em decorrência de um comportamento pode ser descrita através da contingência. Para isso ocorrer é necessário um “se” e um “então”. Se um dos alunos tocasse as barras eletrizadas então recebiam uma descarga elétrica.

Walmsley chega ao local distribuindo roupa, água e protetor solar para cada aluno, realiza algumas orientações e diz que as aulas irão começar. Ele controla a música, eletricidade do chão e o rumo do, até então, novo método de ensino. No dia seguinte, junto com pão e água, Walmsley entrega uma lista de estudos, pois no dia seguinte será aplicada uma prova e garante que quando os alunos terminarem ganharão mais comida.

Inicialmente, os alunos se mostram relutantes, a frequência da emissão de palavrões aumenta e todos acreditam estar em uma pegadinha. A cada palavrão dito, a cada comportamento inadequado, segundo o professor, os alunos recebiam um choque acompanhado de um determinado som. Após o emparelhamento de estímulos, só de ouvir o som, os alunos se retraiam. A punição de determinado comportamento resulta na diminuição da frequência desse comportamento. A punição tem como função retirar certo comportamento de um repertório (Skinner, 1974, p.56).

O reforço positivo, segundo Skinner, aumenta a probabilidade de um comportamento voltar a ocorrer. Então, após um longo período de privação, os adolescentes passam a estudar assiduamente para obterem roupas, comida, itens de higiene e água.

Como os spoilers já passaram da conta nesse texto, me limito e relatar apenas alguns recortes do filme que demonstram situações de reforço e punição. Se deu certo ou não, indico que assistam o filme. Claro que as técnicas utilizadas por Walmsley extrapolaram os direitos e deveres dos alunos. Mas fica o questionamento: Todos podem fazer algo a mais, algo de diferente para mudar a situação do ensino no Brasil, então o que impede os próprios pais e professores de começar a modificar o sistema de ensino? A resposta fica para outro momento.

Referências:

Moreira, M.B.; Medeiros, C.A. (2007). Princípios básicos de analise do comportamento. Porto Alegre: Artmed.

Sampaio, B.; Guimaraes, J. Diferenças de eficiência entre ensino público e privado no Brasil. Econ. aplic., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 45-68, 2009.

Skinner, B. F. (1974). Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix, 2006.

Todorov, J. C. (2007).  A Psicologia como o estudo das interações.  Psicologia: Teoria e Pesquisa (pp. 347-356). Brasília, reedição de texto publicado em 1989, no volume 5 número 3.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Se essa criança se comporta assim... Em que fase ela está? Uma visão analítico-comportamental do desenvolvimento

(Texto escrito por Marjorie Wanderley - Assessoria de Comunicação LAC-AC)

Semana passada eu realizei um curso de Psicologia Hospitalar em um hospital infantil e frequentemente, durante as aulas teóricas, os professores falavam algo do tipo “Eu uso a classificação de fases do desenvolvimento X, mas você tem que usar a que está de acordo com a sua abordagem teórica”... E aí ficava fácil para quem utilizava a Psicanálise classificar as fases do desenvolvimento, para quem se baseava em Piaget ou Vigotski... Mas, e nós? Como podemos falar de fases do desenvolvimento infantil de modo que fique congruente com nossos princípios filosóficos?

Bom, como uma típica aluna de graduação desesperada, corri pedir ajuda por e-mail, e quem me deu uma luz foi a professora Ana Paula Viezzer, da UFPR, que recomendou a leitura de um capítulo excelente que pode nos ajudar a compreender e conversar sobre o assunto... Partindo do princípio de que essa pode ser a dificuldade de alguns de vocês também, vou aproveitar o texto da semana para falar um pouquinho sobre isso, partindo do capítulo que foi recomendado, ‘Uma abordagem analítico-comportamental do desenvolvimento’ de Laercia Abreu Vasconcelos.

Para começar, acontece que eu estava certa em ficar confusa. De fato, a Análise do Comportamento não trabalha com categorização de fases para o desenvolvimento infantil, então nós nunca iremos dizer “pelo o que eu observei, essa criança está na fase de desenvolvimento X, mas de acordo com sua idade, deveria estar na fase Y”. Vamos entender o porquê.

Voltando aos princípios da aprendizagem, fica fácil entender o conceito de desenvolvimento para a Análise do Comportamento – ele é explicado a partir de mudanças nas interações entre o indivíduo e o ambiente. Essas interações são bidirecionais – a ação do organismo altera aspectos do ambiente, e estes retroagem sobre o organismo. Esse processo de desenvolvimento não é entendido como unidirecional, ou seja, as crianças não sobem todas numa escadinha levando a uma única direção – inclusive essa é uma das críticas de Vasconcelos (2010), de que os manuais de Psicologia do Desenvolvimento focalizavam uma visão linear, fragmentada e descontextualizada. Pelo contrário, o desenvolvimento se dá pela história ambiental e é único, pertencente a um indivíduo - sendo assim, fica realmente difícil falarmos de fases do desenvolvimento comuns a todas as crianças, né?

Esse desenvolvimento, ainda, está sujeito à ação dos três níveis de seleção – filogenético, ontogenético e cultural. Esses três níveis estão sobrepostos e possuem uma grande complexidade, e por isso é tão difícil distinguir o que do desenvolvimento é inato, o que foi adquirido pela história de vida e o que foi instaurado pela cultura. A Análise do Comportamento não defende explicações puramente ambientais ou puramente genéticas, considerando que uma está continuamente sob influência da outra – embora o enfoque seja nas contingências, as bases biológicas do comportamento são utilizadas como complemento a qualquer análise.

Considerando que cada indivíduo é único em sua fisiologia, sua história de reforço e a cultura na qual está inserido, o desenvolvimento deve ser estudado a partir dos efeitos de cada variável ambiental sobre o comportamento de um indivíduo, utilizando o método de estudo das relações funcionais de delineamento experimental do sujeito como seu próprio controle. Sendo assim, para a Análise do Comportamento, o conceito de desenvolvimento não requer a formulação de uma teoria do desenvolvimento.

No entanto, isso não quer dizer que a nossa abordagem ignore o desenvolvimento infantil – o analista do comportamento também se dedica a investigar os processos relacionados aos padrões comportamentais, aquisição e manutenção de comportamentos e os estados estáveis de transição, e isso é feito justamente partindo do modelo de aprendizagem operante. Esse modelo é suficiente no sentido de, através da análise funcional, fornecer uma base teórica e metodológica para identificar mudanças comportamentais que compõem o desenvolvimento, indicando inclusive variáveis ambientais que possam gerar previsões e controle sobre padrões de comportamentos.

O método, portanto, seria o de avaliação funcional, enriquecido a partir da observação sistemática, que se dá por meio da descrição objetiva de comportamentos feita por observadores treinados. Essa observação fornece informações relevantes sobre a função de um comportamento em um determinado contexto. Além da análise funcional, os analistas do comportamento podem apoiar-se em dois conceitos para estudar o desenvolvimento – o primeiro deles é o de metacontingências, que são relações funcionais entre classes de operantes, nas quais o comportamento de um indivíduo pode ser uma ocasião ou uma consequência para o comportamento de outro indivíduo - por exemplo, as práticas culturais, que são compostas de comportamentos entrelaçados. Nesse sentido ressalta-se a importância de unidades sociais mais amplas, como família, escola e Estado no desenvolvimento infantil.

O segundo é o conceito de behavioral cusp (algo como ápice comportamental ou cunha comportamental), criado por Rosales-Ruiz e Baer (1997), que permite organizar o processo de desenvolvimento a partir do estudo de mudanças singulares na interação organismo-ambiente que ampliam o repertório comportamental do indivíduo – ou seja, alguns comportamentos ou contingências criam novos comportamentos, que interagem com novas contingências. O modo como isso acontece é uma mudança comportamental expondo o repertório do indivíduo a novos ambientes, especialmente a novos reforçadores e punidores. Um exemplo é o comportamento de engatinhar, que pode ser considerado uma cunha comportamental, no sentido de que possibilita a inserção do indivíduo em um novo contexto e em novas atividades, proporcionando o desenvolvimento diante de novas exigências. O desenvolvimento poderia ser avaliado a partir dessas etapas - comportamentos já presentes no repertório daquela criança, geradores de novos contextos que possibilitam outros comportamentos.

Skinner escreveu especificamente sobre o desenvolvimento, dizendo que se uma criança não se comporta mais como no ano anterior não é porque houve um desenvolvimento de sua mente, como dizia Piaget, ou de sua personalidade, como em Freud, mas sim porque justamente se comporta de modo diferente, não só porque cresceu, mas porque teve tempo de adquirir um repertório bem mais amplo através da exposição a novas contingências (Skinner, 1974/1993, p.60). Portanto, tratar do desenvolvimento significa analisar a aquisição de comportamentos e modificações em repertórios comportamentais ligados à interação do indivíduo com seu ambiente social e com ele mesmo (Alvarenga, 2006). Nesse sentido, fica difícil também falarmos de um déficit ou atraso no desenvolvimento utilizando manuais diagnósticos universais, já que o desenvolvimento é único. Essa dificuldade é ampliada a qualquer tipo de diagnóstico mental, na verdade (mais informações sobre psicopatologia na Análise do Comportamento, em Gongora (2003).

Sendo assim, o desenvolvimento é estudado pela Análise do Comportamento como um conjunto de interações organismo-ambiente e é dado de forma individual, de acordo com a história filogenética, ontogenética e cultural, não sendo, portanto, enquadrado em fases normativas. Embora seja um processo extremamente complexo e influenciado por diversas variáveis, é possível estudá-lo através de análises funcionais, enquadrando aquele indivíduo no que seria esperado de acordo com a previsão de padrões de comportamentos esperados para seu repertório comportamental. Ao meu ver, o fato de não nos basearmos em um manual comparativo de fases do desenvolvimento só ressalta a importância de nós, enquanto profissionais, termos uma base filosófica e teórica extremamente sólida, que esteja apoiando todas  as nossas análises e intervenções, para que possamos entender o desenvolvimento de uma criança de acordo com seu próprio repertório e no contexto na qual está inserida.

Referências
ALVARENGA, P. O desenvolvimento sócio-emocional nos primeiros anos de vida e as contingências em operação na interação pais-criança. In: Guilhardi, H. J. & Aguirre, N. C. de (Orgs.). (2006). Sobre comportamento e cognição: Vol. 18. Expondo a variabilidade. Santo André: Esetec.
GONGORRA, M.A.N (2003). Noção de psicopatologia em Análise do Comportamento. Em: Primeiros Passos em Análise do Comportamento e cognição. Costa, C.E, Luzia, J.C e Sant’ana, H.H.N Org.São Paulo: Esetec.
ROSALES-RUIZ, J.; BAER, D. M. Behavioral Cusps: A developmental and pragmatic concept for Behavior Analysis. Journal of Applied Behavior Analysis, v. 30, p. 533-544,1997.
SKINNER,  B.  F.  (1993).  Sobre o behaviorismo.  (M.  P.  Villalobos, Trad.).  São Paulo: Cultrix.  (Original publicado em  1974)
VASCONCELOS, Laercia Abreu ; NAVES, Ana Rita C Xavier; ÀVILA, Raquel Ramos . Uma abordagem analítico-comportamental do desenvolvimento. In: Emmanuel Zagury Tourinho e Sérgio Luna. (Org.). Investigações Históricas, Conceituais e Aplicadas em Análise do Comportamento. 1ed.São Paulo: Roca, 2010, v. 1, p. 125-151.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Por Que o Batman Nunca Conseguirá Acabar Com o Crime em Gotham?

(Texto escrito por Roberto Veloso - Presidente LAC-AC)

Recentemente estive estudando em um grupo sobre Análise do Comportamento, juntamente com meus colegas do curso de Psicologia e como não podia deixar de ser, acabamos por abordar o tema do controle aversivo, suas pesquisas mais básicas, alguns aspectos teóricos e implicações sociais. No auge do debate, me surgiu uma pergunta divertida que apresentei para os companheiros de discussão: “por que o Batman nunca conseguirá acabar com o crime na cidade de Gotham?”.

Hoje em dia é comum qualquer pessoa conhecer o personagem das histórias em quadrinhos que fez sua primeira aparição na edição 27 da revista Detective Comics, em 1939, vestido em um “uniforme” com aspectos de morcego e que transitava pela calada da noite nos locais mais perigosos da cidade de Gotham combatendo o crime através das próprias mãos. Chamado de Batman, o Homem Morcego, pelas autoridades e pela mídia, nós, leitores dessas histórias, inevitavelmente descobrimos que o Homem Morcego é, na verdade, o bilionário e playboy Bruce Wayne, órfão herdeiro da família Wayne. Os pais de Bruce foram assassinados em sua frente e, traumatizado, ele jurou combater o crime e limpar Gotham da violência, da injustiça e da corrupção.

Os quadrinhos tornaram-se populares na primeira metade do século passado e o personagem morcegudo entrou para a cultura popular, ganhando uma icônica série televisiva na década de 60 (tchã-na-na-na-na-na-na-nam, tchã-na-na-na-na-na-na-nam... BATMAN!), quatro filmes entre 1989 e 1997, e, recentemente, uma excelente trilogia conduzida por Christopher Nolan. Isso sem falar no sem número de desenhos animados, brinquedos e toda uma parafernália midiática. Além, claro, das revistas em quadrinhos que continuam sendo publicadas até hoje.
Batman é, portanto, um homem uniformizado de maneira peculiar que combate o crime de sua cidade com suas próprias mãos, utilizando-se de recursos tecnológicos de ponta para atingir seus objetivos. Mas não apenas isso, ele também tornou-se conhecido por usar o medo como ferramenta de combate ao crime. Conforme suas ações foram se tornando famosas em Gotham, mais e mais criminosos começaram a temer esse vigilante, bem como seu símbolo, o morcego.

E por que, então, ele nunca conseguirá acabar com o crime em Gotham?

Bem, como se trata de um personagem fictício numa cidade fictícia, muitas respostas mais ou menos adequadas podem ser formuladas para essa pergunta. A que nos divertiu naquela discussão foi que as estratégias de combate ao crime utilizadas pelo Homem Morcego são exclusivamente punitivas. Ele circula pela cidade à noite, e, quando dá o flagrante num criminoso, cobre o indivíduo de porrada para depois chamar a polícia. Por “princípios morais” ele não usa armas de fogo e nem mata suas vítimas, mas seus anos de treinamento em artes marciais lhe dão a habilidade de machucar gravemente os bandidos em que coloca as mãos.
Bater, agredir e machucar tendem a ser, na extrema maioria das vezes, formas de punir certos comportamentos. Punição, como sabemos, trata-se da apresentação de algum estímulo aversivo contingente a uma determinada resposta e cujo efeito é a suspensão daquela resposta. Punição, portanto, não é um objeto, mas um evento, um processo.

Skinner nos apresentou em seu livro Ciência e Comportamento Humano (Skinner, 1953/2003) algumas das características da punição. Ela não diminui a frequência do  comportamento, mas suspende o responder, ou seja, uma criança punida por seu pai que a pegou quebrando copos, irá parar imediatamente de quebrar os copos, mas é bem provável que volte a fazê-lo quando o pai não estiver olhando. Em outros termos, punição não elimina comportamentos aprendidos, não os apaga e nem os “deleta” da pessoa.

Outro aspecto da punição apresentado por Skinner (1953/2003) é que ela não nos ensina a fazer “a coisa certa”, mas a evitar ser punido. A criança do exemplo anterior poderia aprender bem rápido a evitar o pai quando estiver brincando, e, se fosse punida em diversas situações diferentes, a até mesmo evitar sempre seu pai. Infelizmente não nos é raro os casos de motoristas que colocam o cinto de segurança apenas quando veem os postos de vigia da Polícia Rodoviária, e isso também é um exemplo de como a punição nos ensina a evita-la.

Combinados, esses dois aspectos criam uma situação lamentável no comportamento de um organismo punido, uma vez que os eventos punitivos suspendem não apenas a resposta que os produziu, como também todas as outras coisas que a pessoa está fazendo ao ser punida. A criança do primeiro exemplo para de quebrar os copos ao mesmo tempo que para de fazer qualquer outra coisa. Assim, ao ser punida, uma pessoa tanto para de fazer tudo o que estava fazendo como tende a se esforçar para evitar tudo aquilo relacionado com o episódio punitivo. Se isso se repetir com frequência, poderemos observar alguém se tornando cada vez mais quieto, cada vez mais ansioso, cada vez mais preocupado não com aquilo que precisa fazer, mas com tudo que precisa evitar de fazer.

O Batman, como vimos, é um agente punitivo para os criminosos de Gotham que cruzam seu caminho. É um agente punitivo no sentido de que ele aplica punições através da agressão e violência nos bandidos que flagra. Pune tanto positivamente ao agredir, quanto negativamente, ao prendê-los até que os policiais cheguem. O que ele acaba por fazer, no entanto, não ensina suas vítimas como agir “adequadamente”. As ensina, isso sim, a fazer de tudo para evita-lo. A presença e atuação de Batman, na cidade de Gotham, não diminuiu em nada a quantidade de criminosos (pelo contrário, aumenta). E, em número maior, foi possível observar um terceiro aspecto dos episódios punitivos que os cientistas chamaram de “contracontrole”.

Contracontrole nada mais é do que os esforços de um organismo punido em interferir com os eventos que o punem. Vemos isso acontecendo quando um animal agredido ataca seu agressor, ou quando um povo se revolta contra um governo e assim começam uma guerra civil. Em Gotham, a presença de Batman desencadeou o aumento de criminosos tanto quanto a sofisticação do crime. Começaram a surgir vilões, supercriminosos profissionais, cada um com estratégias mais mirabolantes que os outros, que levam ao Homem Morcego a também se esforçar para captura-los e, assim, criou-se um círculo comportamental vicioso. Círculo esse que nos remete ao problema colocado no início do texto: se as coisas continuarem como estão, não haverá fim para o crime em Gotham.

Chegamos a discutir, nessa ocasião, o que Bruce Wayne poderia fazer para ser mais eficiente em sua tarefa. Alguns dos colegas sugeriram que ele investisse sua fortuna em educação de qualidade e de fácil acesso para toda a população, enquanto outros defenderam que além disso, seria interessante que ele usasse sua fortuna para proporcionar educação artística e oportunidades de lazer para a população economicamente fragilizada. Uma terceira sugestão foi criar de empregos com boas condições de remuneração. (Curiosamente ninguém mencionou a criação de hospitais de atendimento público; talvez porque a família Wayne já seja famosa por suas atividades filantrópicas em Gotham).

Pessoalmente, acredito que todas essas três sugestões seriam muito mais eficazes do que a cruzada de vingança e violência promovida por Bruce quando ele veste seu uniforme de morcego. Acredito nisso porque em todas as situações que vi, li ou ouvi falar, nas quais o uso de punição foi substituído pelo reforço positivo (a apresentação de consequências a uma resposta e que aumentam sua frequência) os resultados mostraram-se não apenas mais eficazes, como promoveram algum nível de “saúde psicológica” apreciável. Com a notável exceção do personagem chamado Coringa… mas esse merece uma análise inteira só pra ele.

Nos exemplos citados anteriormente, é provável que o pai daquela criança conseguisse que ela não quebrasse copos (e outras coisas) se gastasse algum tempo brincando com seu filho se ele não quebrasse nada, ao invés de dar atenção para ele, através de ameaças verbais ou físicas, apenas quando ele faz algo inadequado. No outro exemplo, já não é incomum a discussão de que mais acidentes e infrações da legislação de trânsito seriam evitadas se os motoristas recebessem “pontos na carteira” ou outros benefícios quando fossem “pegos” seguindo as regras de trânsito ao invés de apenas perderem esses pontos e benefícios quando infligem as leis. Já ouvi, inclusive, colegas propondo dar “estrelas” para os motoristas, tal como se faz com as crianças nos primeiros anos do Ensino Fundamental.

Essas discussões sobre universos fictícios e seus habitantes tão fictícios quanto, mostraram-se um exercício de raciocínio divertido, utilizando os princípios comportamentais que estávamos estudando e debatendo. O Batman foi pego como exemplo porque suas histórias deixam os eventos punitivos bastante evidentes, mas seria possível fazer o mesmo com muitos outros super-heróis e outros personagens (fico imaginando questões semelhantes para o Homem de Ferro e até mesmo para gênios como Reed Richards, do Quarteto Fantástico, ou figuras políticas importantes como Namor, Príncipe de Atlântida).

Em certa medida, também percebi que esse jeito divertido de discutir a punição, suas implicações e alternativas também se mostrou bastante interessante para analisarmos as condições sociais nas quais vivemos. Claro que não temos Batmans ou equivalentes nas nossas cidades, mas é de uma infeliz frequência que vemos as autoridades lidando de maneira punitiva com o comportamento das pessoas. Que até mesmo histórias em quadrinhos refletem certos aspectos sociais já é algum consenso, mas que o conhecimento científico elaborado pela Análise do Comportamento serve para entendermos o comportamento tanto de personagens fictícios quanto situações reais é algo que precisa ser mais explorado e melhor aproveitado.