(Texto escrito por Roberto Veloso - Presidente LAC-AC)
Recentemente estive estudando em um grupo sobre Análise do Comportamento, juntamente com meus colegas do curso de Psicologia e como não podia deixar de ser, acabamos por abordar o tema do controle aversivo, suas pesquisas mais básicas, alguns aspectos teóricos e implicações sociais. No auge do debate, me surgiu uma pergunta divertida que apresentei para os companheiros de discussão: “por que o Batman nunca conseguirá acabar com o crime na cidade de Gotham?”.
Hoje
em dia é comum qualquer pessoa conhecer o personagem das histórias em
quadrinhos que fez sua primeira aparição na edição 27 da revista Detective
Comics, em 1939, vestido em um “uniforme” com aspectos de morcego e que
transitava pela calada da noite nos locais mais perigosos da cidade de Gotham combatendo
o crime através das próprias mãos. Chamado de Batman, o Homem Morcego, pelas
autoridades e pela mídia, nós, leitores dessas histórias, inevitavelmente
descobrimos que o Homem Morcego é, na verdade, o bilionário e playboy
Bruce Wayne, órfão herdeiro da família Wayne. Os pais de Bruce foram
assassinados em sua frente e, traumatizado, ele jurou combater o crime e limpar
Gotham da violência, da injustiça e da corrupção.
Os
quadrinhos tornaram-se populares na primeira metade do século passado e o
personagem morcegudo entrou para a cultura popular, ganhando uma icônica série
televisiva na década de 60 (tchã-na-na-na-na-na-na-nam,
tchã-na-na-na-na-na-na-nam... BATMAN!), quatro filmes entre 1989 e 1997, e,
recentemente, uma excelente trilogia conduzida por Christopher Nolan. Isso sem
falar no sem número de desenhos animados, brinquedos e toda uma
parafernália midiática. Além, claro, das revistas em quadrinhos que
continuam sendo publicadas até hoje.
Batman
é, portanto, um homem uniformizado de maneira peculiar que combate o crime de
sua cidade com suas próprias mãos, utilizando-se de recursos tecnológicos de
ponta para atingir seus objetivos. Mas não apenas isso, ele também tornou-se
conhecido por usar o medo como ferramenta de combate ao crime. Conforme suas
ações foram se tornando famosas em Gotham, mais e mais criminosos começaram a
temer esse vigilante, bem como seu símbolo, o morcego.
E
por que, então, ele nunca conseguirá acabar com o crime em Gotham?
Bem,
como se trata de um personagem fictício numa cidade fictícia, muitas respostas
mais ou menos adequadas podem ser formuladas para essa pergunta. A que nos
divertiu naquela discussão foi que as estratégias de combate ao crime
utilizadas pelo Homem Morcego são exclusivamente punitivas. Ele circula pela cidade
à noite, e, quando dá o flagrante num criminoso, cobre o indivíduo de porrada
para depois chamar a polícia. Por “princípios morais” ele não usa armas de fogo
e nem mata suas vítimas, mas seus anos de treinamento em artes marciais lhe dão
a habilidade de machucar gravemente os bandidos em que coloca as mãos.
Bater,
agredir e machucar tendem a ser, na extrema maioria das vezes, formas de punir
certos comportamentos. Punição, como sabemos, trata-se da apresentação de algum
estímulo aversivo contingente a uma determinada resposta e cujo efeito é a
suspensão daquela resposta. Punição, portanto, não é um objeto, mas um evento,
um processo.
Skinner
nos apresentou em seu livro Ciência e Comportamento Humano (Skinner, 1953/2003)
algumas das características da punição. Ela não diminui a frequência do
comportamento, mas suspende o responder, ou seja, uma criança punida por
seu pai que a pegou quebrando copos, irá parar imediatamente de quebrar os
copos, mas é bem provável que volte a fazê-lo quando o pai não estiver olhando.
Em outros termos, punição não elimina comportamentos aprendidos, não os apaga e
nem os “deleta” da pessoa.
Outro
aspecto da punição apresentado por Skinner (1953/2003) é que ela não nos ensina
a fazer “a coisa certa”, mas a evitar ser punido. A criança do exemplo anterior
poderia aprender bem rápido a evitar o pai quando estiver brincando, e, se
fosse punida em diversas situações diferentes, a até mesmo evitar sempre seu
pai. Infelizmente não nos é raro os casos de motoristas que colocam o cinto de
segurança apenas quando veem os postos de vigia da Polícia Rodoviária, e isso
também é um exemplo de como a punição nos ensina a evita-la.
Combinados,
esses dois aspectos criam uma situação lamentável no comportamento de um
organismo punido, uma vez que os eventos punitivos suspendem não apenas a
resposta que os produziu, como também todas as outras coisas que a pessoa está
fazendo ao ser punida. A criança do primeiro exemplo para de quebrar os copos
ao mesmo tempo que para de fazer qualquer outra coisa. Assim, ao ser punida,
uma pessoa tanto para de fazer tudo o que estava fazendo como tende a se
esforçar para evitar tudo aquilo relacionado com o episódio punitivo. Se isso
se repetir com frequência, poderemos observar alguém se tornando cada vez mais
quieto, cada vez mais ansioso, cada vez mais preocupado não com aquilo que
precisa fazer, mas com tudo que precisa evitar de fazer.
O
Batman, como vimos, é um agente punitivo para os criminosos de Gotham que
cruzam seu caminho. É um agente punitivo no sentido de que ele aplica punições
através da agressão e violência nos bandidos que flagra. Pune tanto
positivamente ao agredir, quanto negativamente, ao prendê-los até que os
policiais cheguem. O que ele acaba por fazer, no entanto, não ensina suas vítimas
como agir “adequadamente”. As ensina, isso sim, a fazer de tudo para evita-lo.
A presença e atuação de Batman, na cidade de Gotham, não diminuiu em nada a
quantidade de criminosos (pelo contrário, aumenta). E, em número maior, foi
possível observar um terceiro aspecto dos episódios punitivos que os cientistas
chamaram de “contracontrole”.
Contracontrole
nada mais é do que os esforços de um organismo punido em interferir com os
eventos que o punem. Vemos isso acontecendo quando um animal agredido ataca seu
agressor, ou quando um povo se revolta contra um governo e assim começam uma
guerra civil. Em Gotham, a presença de Batman desencadeou o aumento de
criminosos tanto quanto a sofisticação do crime. Começaram a surgir vilões,
supercriminosos profissionais, cada um com estratégias mais mirabolantes que os
outros, que levam ao Homem Morcego a também se esforçar para captura-los e,
assim, criou-se um círculo comportamental vicioso. Círculo esse que nos remete
ao problema colocado no início do texto: se as coisas continuarem como estão,
não haverá fim para o crime em Gotham.
Chegamos
a discutir, nessa ocasião, o que Bruce Wayne poderia fazer para ser mais
eficiente em sua tarefa. Alguns dos colegas sugeriram que ele investisse sua
fortuna em educação de qualidade e de fácil acesso para toda a população,
enquanto outros defenderam que além disso, seria interessante que ele usasse
sua fortuna para proporcionar educação artística e oportunidades de lazer para
a população economicamente fragilizada. Uma terceira sugestão foi criar de
empregos com boas condições de remuneração. (Curiosamente ninguém mencionou a
criação de hospitais de atendimento público; talvez porque a família Wayne já
seja famosa por suas atividades filantrópicas em Gotham).
Pessoalmente,
acredito que todas essas três sugestões seriam muito mais eficazes do que a
cruzada de vingança e violência promovida por Bruce quando ele veste seu
uniforme de morcego. Acredito nisso porque em todas as situações que vi, li ou
ouvi falar, nas quais o uso de punição foi substituído pelo reforço positivo (a
apresentação de consequências a uma resposta e que aumentam sua frequência) os
resultados mostraram-se não apenas mais eficazes, como promoveram algum nível
de “saúde psicológica” apreciável. Com a notável exceção do personagem chamado
Coringa… mas esse merece uma análise inteira só pra ele.
Nos
exemplos citados anteriormente, é provável que o pai daquela criança
conseguisse que ela não quebrasse copos (e outras coisas) se gastasse algum
tempo brincando com seu filho se ele não quebrasse nada, ao invés de dar
atenção para ele, através de ameaças verbais ou físicas, apenas quando ele faz
algo inadequado. No outro exemplo, já não é incomum a discussão de que mais
acidentes e infrações da legislação de trânsito seriam evitadas se os
motoristas recebessem “pontos na carteira” ou outros benefícios quando fossem
“pegos” seguindo as regras de trânsito ao invés de apenas perderem esses pontos
e benefícios quando infligem as leis. Já ouvi, inclusive, colegas propondo dar
“estrelas” para os motoristas, tal como se faz com as crianças nos primeiros
anos do Ensino Fundamental.
Essas
discussões sobre universos fictícios e seus habitantes tão fictícios quanto,
mostraram-se um exercício de raciocínio divertido, utilizando os princípios
comportamentais que estávamos estudando e debatendo. O Batman foi pego como
exemplo porque suas histórias deixam os eventos punitivos bastante evidentes,
mas seria possível fazer o mesmo com muitos outros super-heróis e outros
personagens (fico imaginando questões semelhantes para o Homem de Ferro e até
mesmo para gênios como Reed Richards, do Quarteto Fantástico, ou figuras
políticas importantes como Namor, Príncipe de Atlântida).
Em
certa medida, também percebi que esse jeito divertido de discutir a punição,
suas implicações e alternativas também se mostrou bastante interessante para
analisarmos as condições sociais nas quais vivemos. Claro que não temos Batmans
ou equivalentes nas nossas cidades, mas é de uma infeliz frequência que vemos
as autoridades lidando de maneira punitiva com o comportamento das pessoas. Que
até mesmo histórias em quadrinhos refletem certos aspectos sociais já é algum
consenso, mas que o conhecimento científico elaborado pela Análise do
Comportamento serve para entendermos o comportamento tanto de personagens
fictícios quanto situações reais é algo que precisa ser mais explorado e melhor
aproveitado.